sexta-feira, 14 de novembro de 2014

O tecelão de asas

    Haroldo, jovem rebelde, passou a sentar-se nas fileiras de uma casa Espírita a convite de um amigo. Durante quatro semanas consecutivas, assistiu, atentamente, o conteúdo das palestras dominicais. Ao fim das jornadas, de no máximo 1 hora, ele virava às costas e ia embora. O máximo que fazia era desejar “boa noite” para alguém que lhe atravessasse o caminho.
     Na última das exposições, das quais já se tornara participe assíduo, Haroldo foi interpelado pelo companheiro, cuja amizade o havia levado àquele lar de caridade. O tema da palestra, recém-terminada, ainda fervilhava no coração do jovem. Afogueado pelo próprio temperamento ansioso, ele não conseguia modular, numa freqüência harmoniosa, os pensamentos. Sofria entre o êxtase da descoberta e o barulho estridente do chamado, com aparência de reprimenda, em virtude de sua enorme cupidez.
     Quando a água fluidificada já agia nos recônditos do organismo físico, o ânimo do rapaz serenou e, num rápido exercício de reminiscência, as temáticas das exposições lhe vieram à cabeça.  No primeiro domingo, o assunto trazido à baila foi o perdão; na semana seguinte, o palestrante, da vez, falou de amor; na terceira ocasião, a caridade tomou conta do cenário e, por fim, um senhor dissertou sobre a Justiça Divina.  
   Haroldo tentou reunir todos os temas num só raciocínio para proferir um parecer definitivo ao amigo. Assim, meio atônito, o jovem bradou:
  – Isso aqui, referindo-se ao Centro, – é uma escola de utopias. – Vocês vendem idéias fantasiosas.    Senti-me coagido ao sacerdócio da santidade. O que querem, afinal? Transformar homens imperfeitos e que pecam, a cada dia mais, em anjos?
  – Exatamente, disse Gabriel, o devotado companheiro.
  Haroldo riu sem disfarçar o espanto e voltou à carga das inquirições, com certo sarcasmo:
  – Por que eu não vejo as suas asas, nobre amigo?
  De prontidão, veio a resposta sensata: – Pois elas não estão prontas...
  Em ato continuo, ocorreu o espanto: – Como assim?, perguntou Haroldo, diante do que ouvia.
  A explicação fez-se meticulosa:
  – O Espiritismo não prepara uma armadura alada para colocar nas costas de seus adeptos. As asas do anjo ganham forma a partir de singelas plumas, conquistadas no cotidiano. Não perca tempo averiguando as condições de vôo alheio. Se fulano tem ou não asas, pouco importa. Quando você estiver no exercício de construção da sua angelitude, uma vontade inabalável de auxiliar os outros irá lhe invadir. Então, em vez de uma competição para aferir quem possui a plumagem mais bonita, haverá um vôo harmônico, similar ao das andorinhas que, em conjunto, fazem suas viagens no azul do Céu.
   – E o que representam essas plumas?, quis saber Haroldo.
   – Os pormenores do perdão, do amor, da caridade e da Justiça Divina.
   – Esses não foram os temas das palestras?, assustou-se o jovem.
  – Correto, afirmou Gabriel. – Mas, em 1 hora, é impossível dissecar assuntos tão amplos. Cabe a você desvendá-los, um a um, com a mesma destreza do alfaiate que tece, minuciosamente, cuidando de cada detalhe, as plumas das asas de um anjo para uma festa à fantasia. No seu caso, porém, não há fantasia alguma. As plumas são reais e invisíveis ao mesmo tempo. Contêm, em si, beleza rara, todavia você não irá se deleitar com os elogios, porque, no meio da grande festa – que é a Vida – haverá muitas trevas e outras vezes, as pessoas, em volta, usarão máscaras, e tudo caminhará para que o seu trabalho íntimo não seja visto.
   – E o que fazer para adquirir tais plumas?
–  Hoje, o nosso coração faz uma série de exclusões, como quem diz: “para amar beltrano não posso amar sicrano”. Vivemos montando trincheiras que põe em lados apostos grupos separatistas. Cremos que para abrigar alguém em nosso âmago, devemos desalojar outro. Conhecemos, tão-somente, o amor em seu aspecto singular; limitamos o espaço dos nossos sentimentos. O anjo, contudo, fala a linguagem do plural. O Espírito puro tem amores, e não, um amor solitário, pois certo dia, na condição de homem, ele dilatou as fronteiras do próprio coração e, como recompensa meritória, passou a amar o inimigo com a intensidade que, outrora, não conseguia amar o próprio filho.
   Comovido, Haroldo esqueceu-se do orgulho e recolheu a primeira pluma de sua futura asa. Num preito de gratidão, sentiu – em atitude espontânea – o amor verdadeiro pelo amigo, que o instruía no inicio de uma nova era espiritual. 

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Reviver

As nuvens, gentis,
sentindo a luminosidade
que lhes transpassava,
abriram as cortinas da alvorada,
para que o Astro Rei pudesse
aquecer a Terra
com os raios debutantes,
no fenômeno do amanhecer.
O teatro da Natureza, em festa,
inaugurou uma nova Era de amor, em mim;
graças ao anjo, que velando à cabeceira,
apresentou-me a janela da Vida.
Assim, os meus monólogos de lamento
tornaram-se diálogos, de agradecimento, ao Criador.

Aprendiz

   Sentado, em baixo de uma gigantesca árvore, cansado pelas desilusões do dia, roguei aos céus um milagre, capaz de levar embora as minhas dores. Muito triste, fiz comovida oração. Passaram-se duas semanas, e o fato extraordinário, reiterado nas rogativas, não aconteceu. Retornei ao mesmo lugar para, novamente, refletir. Refiz a prece, certo de que, “agora”, o meu problema seria resolvido. Mais quinze dias no relógio do tempo... E nada mudou. Aflito, fui recebido, outra vez, pelas copas majestosas. Recostei-me em seu tronco e, exaurido, dormi. Viajei nas asas dos sonhos, e fui parar no sopé de uma montanha, onde uma ilustre alma me apontou o universo infinito. Não a compreendi. Vendo a necessidade da linguagem articulada, o irmão – em cândida explanação – inquiriu-me: “quantos, na Terra, gostariam de ter uma sombra para descansar, e não a tem. O milagre é você refugiar-se sob os auspícios de uma árvore, na imensidão de um planeta que gira no final da Via Láctea. O que exige da Criação além disso?”

   Quedei a cabeça em ato de vergonha. A caridade me consolou... O ensinamento não tinha o aspecto de reprimenda. Era fonte de água viva, que serena e refaz as forças. Aceitei aquelas palavras humildes ao reconhecer o nanismo das minhas atitudes perante aquele espírito excelso, cuja experiência na seara do Mestre já rendia frutos de bem-aventurança; enquanto eu ainda não havia aprendido a semear virtudes imperecíveis e vacilava como aprendiz do amor. Só assim, compreendi que toda forma de mágoa e imposição à Divindade é objeto estranho na intimidade do coração.

segunda-feira, 28 de julho de 2014

Não desista...

 - Por que insiste em cuidar de mim? Já não tenho mais jeito. Sou caso perdido. Nem mesmo os meus familiares se importam com o que eu sinto. Vá, menino; siga a sua vida, não perca tempo com essa velha ranzinza e cheia de manias. Você não tem motivos para se preocupar comigo. Conheceu-me há pouco tempo, não temos laços afetivos. Deixe de bobagens...
Conforme a senhora encontrava desculpas para se mutilar emocionalmente, Lucas sorria em segredo, cheio de compreensão. Nenhum argumento o faria recuar. Por quê? Ele amava demais. Aos seus olhos, muitas mulheres já haviam se tornado mães; principalmente, as que traziam no coração tristezas profundas, que desafiavam as intervenções psiquiátricas. Desacostumadas à doação incondicional, muitas ficavam assustadas com a dedicação do jovem, uma vez que nem em seus filhos encontravam tamanho zelo.  
Dona Júlia já se entregara às dores e não admitia que ninguém - ainda mais um jovem pretensioso, nas palavras dela -, viesse lhe devolver a lucidez. Como argumento fatal, ela tentou congelar de vez o calor humano que ousara tocá-la.
  – Escute aqui, rapazinho, você não conhece a metade dos meus sofrimentos. Se os conhecesse, duvido que estivesse aqui me infernizando. Teria, no mínimo, um pouco de educação. O que pode uma velha, de 70 anos, esperar da vida?  Quando moça não fui feliz; o que a juventude não pode fazer por mim, a velhice certamente também não poderá.
Quanto maior ficava o problema, mais Lucas se envolvia de coragem. Calejada por tanto se maltratar, D. Júlia tinha convicção de que as pessoas boas não existiam e que as tentativas de auxílio eram frágeis discursos, incapazes de resistir ao seu verbo mordaz. Pela primeira vez, ela falhara na estratégia melancólica que fazia qualquer um sair zonzo. Não raro, vizinhos e parentes ficavam frustrados e diziam: “essa não tem jeito, só a morte...”.
O substantivo derradeiro era o recurso preferido de D. Júlia. Os netos mal podiam se aproximar que ela emendava qualquer pergunta com a secura peculiar – “estou só esperando...”. Ao perceber este vazio, Lucas falou pausadamente: “somos todos astronautas do além”. A senhora olhou-o com rispidez, sem nada entender, como quem afirma não ter tempo para maluquices.
- Moleque, por acaso, você quer zombar de mim?
- Não, senhora, disse ele. – Quero lhe mostrar novos mundos. Um amigo da espiritualidade, chamado Irmão-X, que se apresentou a Chico Xavier, contou-nos em prosa a advertência de Jesus a Pedro: “sombra por sombra, dá sempre um total de trevas”.
Assustada, a personalidade tormentosa fez deboche. – Era só o que me faltava. Um moleque querendo provar a existência de espíritos, e o pior... De espíritos filosóficos! Tenha santa paciência. Na minha situação, já faço um esforço tremendo para continuar acreditando em Deus...
O querido sonhador recorreu a carta apostólica de Tiago para confirmar que o corpo sem o espírito é obra morta. D. Júlia balbuciou palavras quase inaudíveis para extravasar o seu descontentamento. Firme, Lucas persistiu:
- A senhora está recebendo uma oportunidade de repensar a vida e refazê-la sobre outros contornos. Os amigos não lhe abandonaram. Quem nos abandona são os ditos conhecidos. Amigo de verdade não desiste de nós, eles fazem como o bom samaritano que, mesmo sem motivações aparentes, socorre o doente no caminho, pois como um astronauta transcende os liames do céu e crê na irmandade das almas que se transportam pelo espaço.
- Por que diz isso, menino? Procure um psiquiatra. Tão jovem... E lunático!
Chegara, enfim, a hora certa. Lucas pediu: - conte-me, D. Júlia, sobre o sonho que teve esta noite com o seu filho adotivo.
Ela gelou. Como alguém poderia saber do que se passara em seu sono? Vasculhou a memória, e não se lembrou de comentário algum. Nem as árvores do quintal, suas únicas companheiras, haviam lhe escutado falar a respeito da viagem onírica. A visão extracorpórea ainda fazia sangrar as chagas profundas do perispírito. D. Júlia desmoronou. A pedra impenetrável banhava-se em lágrimas que como as águas de um rio vão levando as impurezas do caminho. Através do pranto, veio a história.
- Eu vi o meu querido filho, em baixo de um coqueiro, à noite, fazendo fogueira para espantar o frio. Quando eu o gritei pelo nome – Zezinho! – ele me perguntou: “a senhora está bem?”. Como me doeu ver aquela cena. Nos primeiros anos de casada, o meu marido foi a um orfanato para adotá-lo após muitas visitas. Fui terminantemente contra. Queria frutos do meu ventre. Egoísta, maldizia a possibilidade de criar filhos dos outros. Mas, o Marcus, tão generoso, apaixonou-se por aquele menino e o trouxe para casa. Com o tempo, fui me acostumando, sem nutrir nenhum bom sentimento pela criança. Depois, fiquei grávida por três vezes num período de 8 anos. A minha prole estava feita da maneira tradicional. Mimei Tomás, Leonardo e Fábio, ao passo que oprimia e escravizava o Zezinho. Há três anos, ele se foi e ficou um vácuo gigantesco de saudade e remorso. Dos 4, sempre o mais carinhoso, prestativo e leal. A prova disso é que estou velha, e os outros não se importam comigo.
Lucas aproveitou o ensejo para revelar o encontro que tivera com Zezinho. D. Júlia tentou, é verdade, duvidar. Como pode alguém conversar com mortos? O sonho, para ela, havia sido um desses fenômenos anormais que a ciência não pode explicar. Atribuía, porém, grande culpa a si mesma e imaginava que os alertas espirituais eram, tão-somente, o peso de sua consciência endividada. Apesar do esforço, não foi possível negar as evidências. Lucas lhe contou particularidades ímpares da vida de Zezinho que a madrasta segredava com esforço incomum.
Em desatino e impulsiva, a mãe abandonada pela prole legítima bradou: - O que ele quer agora, me jogar na cara os maus tratos que o submeti?
Absolutamente tranqüilo, Lucas contrapôs a idéia de vingança: - De forma alguma; ele só revelou o imenso amor que sente pela senhora e a gratidão duradoura desde o tempo em que foi acolhido em sua casa.
Aceitando o diálogo mediúnico, por não ver meio de negá-lo, D. Júlia duvidou da bondade de Zezinho: - É impossível que ele nutra sentimentos bons para comigo; eu lhe humilhei o quanto pude. Perdoar assim ultrapassa a utopia...
- O seu filho me confidenciou que permanece, em preces, pela mãe e que no dia certo, estará a sua espera no plano espiritual. Para que o reencontro se confirme, Zezinho pediu que a senhora procurasse o orfanato, onde ele fora adotado para dar início a um trabalho de devoção e caridade. Disse também que fosse empregado nesta tarefa, o dinheiro do patrimônio deixado pelo seu marido. É um pedido também do Dr. Marcus, que gostaria de ver o suor de tanto trabalho empregado em favor das crianças. O ex-marido da senhora sofre com a estagnação dos filhos e o uso estritamente particular da herança.
Ao ouvir outras pequenas e importantes revelações acerca da personalidade do homem que aprendera a amar, D. Júlia sentiu um brilho reativar as atividades supremas do coração e percebeu que ela não era velha, e sim, uma recém-nascida para as coisas do espírito. Com o chacra cardíaco dilatado pelas luzes antes desconhecidas, ela fez um agradecimento seguido de um pedido:
 - Lucas, muito obrigado por não ter desistido de mim. Se não fosse a sua heróica atenção, eu continuaria por aqui morta antes mesmo de morrer. Por favor, ajude-me a concretizar o sonho de Zezinho e Marcus.

Esbanjando ternura, o jovem abraçou-a, como quem diz “eu aceito”. 

sexta-feira, 25 de julho de 2014

Evangelho no Lar

Passo 1: Escolha o melhor dia e horário para o encontro semanal com Jesus, o Divino Oxalá. Opte por uma hora em que você possa ficar na mais absoluta paz. O culto deve ter no mínimo 15 minutos, mas não se preocupe com o tempo e nem se você estiver sozinha. Deixe-se envolver pela energia dos espíritos consoladores.

Passo 2: Antes de começar, reserve uma garrafa ou jarro com água potável para fluidificação. Inicie a tarefa espiritual com a prece de abertura, que melhor toque o seu coração. As palavras podem ser suas ou estarem escritas em algum lugar. Não importa! O que vale é construir uma ponte entre você e o mundo dos bons espíritos.  

Passo 3: Terminada a prece, abra aleatoriamente o livro “Pão Nosso”, ditado pelo espírito Emmanuel a Chico Xavier. Faça a leitura da página e reflita sobre os ensinamentos. Se quiser, comente em voz alta o que entendeu como se estivesse dialogando com o seu “Eu interior”. As falanges do bem estarão contigo, prestando-lhe auxílio. Lembre-se sempre: quem acende uma vela e a põe sobre a mesa ilumina todo ambiente. O Evangelho é muito mais do que uma vela; é um holofote infinito de bênçãos.

Passo 4: Terminada a reflexão, inicie o estudo de um capítulo do Evangelho Segundo o Espiritismo. O tema é de livre escolha. A leitura pode ser pausada para meditações acerca do conteúdo e comentários.

Passo 5: Ao final do estudo, faça a prece de agradecimento e tome a água fluidificada.

Passo 6:  Muitas coisas vão acontecer para que você interrompa ou até mesmo não inicie o Evangelho no Lar. Faz parte da vida. Porém não desista. O alimento da alma é invisível e o bem se propaga como uma onda, sem ficar restrito a quem o pratica.


                         “O amor cobre uma multidão de pecados” 
                                                                             Pedro (I Pedro, 4:8)



quarta-feira, 9 de julho de 2014

O ponto obscuro da idolatria

     O comportamento ensandecido do povo na presença de ídolos, fabricados pelo mercado publicitário, deveria causar perplexidade aos agentes sociais. As cenas repetidas de jovens desesperadas clamando por autógrafos e abraços dos jogadores da seleção estampam uma imagem triste das relações humanas. Desencontradas, as pessoas insistem em cultivar paixões artificiais e não percebem a obviedade: o craque tocado por rápidos momentos é um ser intangível. Não por ocupar o patamar de uma divindade. Longe disso; mas pela distância. O fã, aos prantos, jamais saberá quem o alvo da idolatria realmente é, pois os seus corpos não se encontrarão mais e, quiçá, o craque se esquecerá daquela criança que viu num dia qualquer. Algo absolutamente normal. Os “astros” são muito requisitados, e como diz a velha sentença – “a multidão não tem rosto”. Se os fãs cultuam determinadas personalidades; as mesmas, em contrapartida, homogeneízam a fiel claque e fazem dela uma massa de gritos, assobios e histeria, capaz de criar verdadeiros ególatras.

    Quem dera toda a paixão ofertada a uma casta de celebridades fosse, um pouco, desviada para cuidar do vizinho e do parente, que vivem ao lado. Em vez de adorarem pôsteres, como um hábito normal, os adolescentes poderiam se dedicar, com apreço, a cuidar das estruturas dotadas de vida onde bate um coração. Que visão é essa que enxerga aquele que mora além do Atlântico sem observar  pais e avós dentro de casa? Claro que não se pode generalizar, sob o risco do excesso; há jovens zelosos e cheios de amor para com os seus; contudo, a frieza de muitos é inegável e facilmente constatada pelas obras inumanas que a sociedade exibe. Ou, por acaso, alguém estará mentindo se disser que os idosos sofrem nas masmorras dos lares e que as mães perdem noites de sono à espera de seus filhos (ébrios noturnos) e, comumente, sofrem agressões verbais e físicas dos mesmos já narcotizados?

    Vive-se num mundo que adora fotografias. A maioria deseja exibir a fronte maquiada – a aparência superficial; e as fotos são pródigas nesta arte de escamotear. Como faz falta o olhar radiográfico, que percrusta a essência e permite localizar a doença para tratar o doente! O objetivo não é exibir de forma mesquinha os fantasmas e as contradições do homem; em verdade, a meta é fazê-lo penetrar a realidade de si mesmo. A projeção da consciência na vida alheia, como se o outro fosse sempre um bem-aventurado, enquanto aquele que observa põe-se em patamar inferior, lesa as virtudes imanentes da alma. Não raro, perambulamos cheios de curativos invisíveis; em vez, de andarmos em destino certo. Dá agonia ver que as referências da juventude utilizam discursos pasteurizados, poses forçadas e marcas, que fazem do público-alvo um amontoado de cifras.

   Se há uma providência urgente, é a de ocupar o tempo a serviço de quem está ao alcance da mão, que afaga, acaricia e remedeia. A época de ser enganado pelos slogans patrióticos já passou. Jogador nenhum joga, verdadeiramente, pelo povo, como dizem. No fundo, eles atuam por ambições, sonhos e desejos próprios. Os louros de campeão do mundo não enfeitam a cabeça da grande maioria; para ela, o título só traz a emoção de instantes fugidios. “Quem entra para história” são os sujeitos da fama, frutos de uma geração paparazzi.  

   Se tiver que correr, vá em direção a quem lhe ama, e não, atrás de um ônibus lotado de jogadores que não lhe conhecem; se tiver que lotar um local de trabalho, preencha as salas de aula, os professores têm para oferecer lições muito mais importantes do que as de um treino de bola; se tiver que chorar, chore pela dor de alguém que sofre ao lado; se tiver que ser brasileiro, seja cuidando de tudo aquilo que vive ao alcance das suas mãos; enfim... Grite e consagre quem está contigo. Observe os heróis anônimos.





domingo, 6 de julho de 2014

Coragem

   De vez em quando eclode um grito do coração, e os olhos, gastos pelo excesso de sombras ao redor, buscam o colorido da vida em mundos distantes do nosso. Sentado à margem do rio, o médium colocava um barquinho de papel na água como se estivesse entregando à Natureza uma porção de suas angústias. Na frágil arquitetura pueril, simbolicamente, navegavam certas questões incomuns e fora da preocupação dos navegantes.  Por que os filhos de Zambi andam tão maus uns para os outros? De onde vem a sanha ostensiva que não cansa de provocar sofrimentos? O homem, com trejeitos de menino, buscava respostas para enfrentar os ambientes de batalha, a astúcia daqueles que ferem sem remorsos e se especializam em calar as vozes dissonantes com o brado da covardia.
   No painel límpido das correntezas, o jovem percebeu uma onda energética sublimar o local em que estava. Era Oxum quem envolvia o corpo mental do medianeiro a fim de lhe encorajar o trabalho no solo agreste das almas que habitam o Planeta Azul. “Meu filho”, dizia a mensagem celestial, “não se esqueça jamais de Ogum. Os homens lutam por causas insanas, brigam por motivações mesquinhas, causam ulcerações na tessitura familiar e vivem invejosos porque não reconhecem o impulso divino trazido pela vibração cósmica do Orixá Guerreiro. Daí o excesso de covardes nesta plaga terrena. Na contramão das virtudes divinas, os primatas estacionários – esquecidos do compromisso da evolução – cravejam corpos de bala; aumentam a orfandade; estupram; impelem os governos a criarem delegacias, cada vez mais especializadas, devido à multiplicidade de crimes e alimentam amizades superficiais por gozos alucinógenos. Frente ao atual estágio, é preciso que os bons dêem provas reais de sua bondade, impondo resistência, quando houver forças possíveis, para deter a propagação da barbárie. Não dá mais, meu menino, para ficar calado. Muitas coisas estão aquém da vontade meramente humana, mas tantas outras – que formam a maioria – dependem exclusivamente de vocês. Não engrossem as fileiras dos exércitos obscenos. Olhem o trabalho das falanges do bem. Os oprimidos precisam sair de suas catacumbas, haja vista que permanecem vivos. Os sonhos menores das aspirações mercenárias são mais facilmente obtidos; por isso, tão profícuos tornam-se as empreitadas dos poderosos da Terra. Prefira, pois, o caminho inverso. Cultive ideais de amor, cuide das mulheres indefesas, dos idosos maltratados, das crianças que perambulam e não se associe aos homens que trajam a capa da hipocrisia. Oxalá enviou espíritos amigos à escola que prepara discípulos para o Reino anunciado. Coragem! Eu lhe peço. Por enquanto, o que vocês têm são apenas casas de tijolos materiais. Seja uma viga resistente no lar imenso ainda em construção".

domingo, 1 de junho de 2014

Uma maravilha de carta. Coisas de Francisco Cândido Xavier

       Um dia, Chico Xavier, através de uma bela carta, fez a seguinte pergunta: “E para nós, onde Jesus nasceu?” A quem interessar eis o link que conduzirá ao texto:                                   http://www.espirito.org.br/portal/artigos/diversos/natal/onde-jesus-nasceu.html

   A compreensão da poesia do médium - que se assemelha, em beleza e espiritualidade, a qualquer uma das epístolas bíblicas - é de foro íntimo. Desejo, apenas, que as letras possam tocar o coração dos leitores com a mesma emoção à qual fui presenteado. De minha parte, posso dizer que o nascimento de Jesus marca uma profunda transformação no âmago de cada indivíduo. A criatura que sente a luz do Cristo tocar-lhe as fibras da alma aprende a conjugar, onde quer que haja vidas, o verbo amar. O homem, antes incapaz de uma delicadeza, deixa-se inundar pelo hálito divino e passa a falar de amor com a maior naturalidade, sem medo de parecer sentimentalista ou utópico. Chegará o tempo, também, em que esse homem, mais humanizado, será enviado para “o meio de lobos” a fim de semear o Evangelho. Então, muitos ataques ele receberá, como alertou o Amoroso Rabi. Sob pedras que ferem a carne e o veneno da maledicência, será chegada a hora magna de resistir ao peso da própria cruz e seguir o Mestre. Daí a necessidade premente do amor, porque, somente, quem ama pode suportar tantas dores. Não à toa, as mães são exemplos formidáveis de “Marias” neste mundo de Deus. Creio que nos falte esta porção feminina e materna da Criação. Ainda não aprendemos a acolher, a cuidar e a abraçar os nossos irmãos. Devagar um dia conseguiremos tal façanha. As conquistas se dão aos poucos. De repente, o espírito desperta através de um texto, chora feito criança, passa a observar a natureza, a tocar os animais, a ouvir os idosos e, sem perceber, vai se adequando  ao ensinamento relatado por João, o bem amado: " Nisto conhecerão todos que sois os meus discípulos: se vos amardes uns aos outros".


quinta-feira, 22 de maio de 2014

A beleza do reencontro

Em carta,  o menino agradeceu...


A distância impede que possamos nos ver com freqüência. Graças a Deus, através da Doutrina Espírita tivemos condições, nesta existência, de dedilhar a grandeza do mundo invisível. Se as barreiras materiais são obstáculos para os nossos encontros fraternos, o poder oculto das orações é capaz de nos aproximar como bons amigos. Tenho absoluta certeza que os espíritos iluminados nos ouvem atentamente. Só de imaginar que uma pessoa tão doce e gentil, como a senhora, reza por mim, já me sinto melhor. É maravilhoso saber que alguém zela pela nossa paz. Nesses instantes em que a brisa fresca traz a harmonia de suas preces, esqueço de minhas dores e recupero a mensagem, às vezes esquecida, do amor. Mesmo que quisesse, eu não seria capaz de mensurar tamanha compaixão...

 Quando nos vimos pela primeira vez, a senhora disse que tinha identificado, em mim, a figura de um neto. A frase foi tão definitiva e marcante que não pude esquecê-la. Até agora, guardo essa pérola em meu coração. Nesta vida, pelo menos, não havia antecedentes entre nós dois. Éramos desconhecidos um para outro. Felizmente, a passagem terrena, na qual estamos, não explica toda trajetória dos espíritos – que são verdadeiros andarilhos do universo. Numa época diferente, Deus nos fez amigos e, hoje, pela vontade dEle, tivemos a oportunidade de nos reencontrarmos. Quanta alegria! Em nenhuma outra pessoa, identifiquei tantos pensamentos afins com os meus. A senhora fala do Evangelho de uma maneira que me cativa. Ouvindo-a tenho Jesus comigo. Como agradecer? Impossível!

Se eu sou um neto para senhora, devo lhe dizer que a relação é perfeita: porque um neto precisa de uma avó. Através de suas palavras, recebo esperança e incentivo para crer, com fé, no futuro. É raro alguém que nos escute com atenção. Mesmo, lado a lado, muitas pessoas ouvem nossas aflições indiferentes. A senhora não. Pelo contrário, permite que eu me expresse e, quando diz algo, sempre se pronuncia carinhosamente. Atento, percebo o quão importante é a dimensão do cuidado. Tudo aquilo que cuidamos floresce um dia. E aqui está a nossa amizade bela como o botão de uma rosa. Encerro estes humildes dizeres, desejando-lhe que seja feliz. O máximo que puder.

                   Beijos

                                

domingo, 4 de maio de 2014

A resposta do caboclo

O médium, que se dedica às coisas do coração, não deixa de passar por sofrimentos angustiantes e no cume das dores, geralmente, costuma perguntar: – Por que eu, meu Pai? Quando estava no lodo da ignorância nenhum mal, aparente, acometia o meu corpo; hoje, desperto para a Tua verdade, suporto grandes aflições. Onde estão os espíritos protetores que nada fazem por mim?

– Aproxima-se, caboclo!, pediu o Preto-velho que a tudo escutava com uma tocante misericórdia.

O jovem enfermiço dobrou as pernas feito um oriental e sentado na esteira de palha, começou a meditar. Timidamente, uma missiva de paz transpôs a barreiro da desolação a ponto de serenar o seu sistema nervoso:

– Estou aqui, querido. Não esqueci a nossa irmandade e, menos ainda, o compromisso mútuo que temos. Se esta hora ainda é de dor, reflita! Na sua intimidade, verá que outrora as provações foram mais difíceis. Lute! O caráter da fé inabalável é conquistado através do esforço. Não tema a queda. Quanto mais houver dedicação para assimilar as mensagens de Jesus, maior será o descontentamento dos espíritos encarnados e desencarnados que se utilizam da baixa magia a fim de interferir no livre arbítrio dos outros. Porém, essas almas ignoram a Lei do Retorno. O machado de Xangô não perdeu a firmeza do seu corte. Creia nisto! A Justiça Divina permanece soberana, e o peso das pedras que você segura pode ser insuportável para quem desconhece o amor de Oxalá.

As palavras não se formaram na mesma rapidez que podemos lê-las. Vieram, sim, suaves como a folha que despenca da árvore e toca o chão, belas a exemplo da pena que brilha no cocar e certeira igual ao curso da flecha.           


quarta-feira, 30 de abril de 2014

O silêncio e o grito

De vez em quando, indignar-se faz bem.
Ainda mais para aqueles que conhecem o certo,
mas fecham os olhos e assumem o papel de cúmplice.
Felizmente, o mundo gira.
É só esperar...
Então, o sujeito que, hoje, se cala será obrigado a gritar,
pois a sua hora de ser ferido também chega.
Uma cristalina questão psicológica:
Alguns opressores não conhecem limites e nem a gratidão.
Eis que a figura, antes idolatrada, passa a vestir a capa de algoz.
E surge a inevitável pergunta: por que a vítima, da vez, não se indignou antes?
Fácil. A dor dos outros não importa...

segunda-feira, 28 de abril de 2014

O amor que conduz à Aruanda

   Eram lindas as suas pregações. Não havia como as pessoas não se emocionarem. Ele estava liberto do tom eclesiástico e dos dogmas cheirando a mofo. Preferia, sempre, falar ao coração, tocar no ponto delicado da alma, exaltar os esforços em direção ao amor e fazer da sua missão um tributo à fé. Aprendeu, também, com o tempo, esse senhor cheio de sabedoria, que, apesar de ser um padre conhecido e procurado, não era melhor do que ninguém. Foram diversas as vezes em que o velho sacerdote muito mais ouviu do que falou. Dizia o necessário quando solicitado, jamais para fazer pose ou repetir a surrada ladainha. “Homem de Deus no meio do povo”, assim o definiu certo poeta, que fazia trova na praça, em frente à Igreja. Porém, a dileta humildade lhe impedia de aceitar as honras – “ sirvo, cheio de limitações, o Cristo de quem sou camarada”, o padre contemporizava para suavizar o impacto dos elogios aos olhos daquela gente simples...

   Sabia ele, perfeitamente, da alma mística do brasileiro. Nas missas ou em rodas de cantigas, o povo dava um jeito de reverenciar o Sagrado. Deus estava muito presente na vida de todos. E como as dificuldades eram imensas, devido à pobreza, bastava uma doença e a falta de dinheiro para comprar remédios, que a mãe desesperada procurava a Igreja – ia fazer orações em favor do filho amado. Não raro, as maternas senhoras perguntavam ao padre o jeito de orar. E ele dizia “Deus escuta o teu silêncio”. Jamais, infantilizou os leigos ou se utilizou da teologia acadêmica para persuadir alguém de algo. Admitia, sem problemas, ser convencido de uma verdade maior do que a sua. Jamais se punha fechado aos movimentos do mundo. Dizia-se pronto a receber o reflexo das estrelas no espelho da sua alma, ainda mais se ela chegasse, mansamente, alheia a usina que continha em si.

    Por essas, ele alimentava o costume de ir aos confins da cidade para levar conforto aos descamisados. Numa dessas caminhadas, o querido padre recebeu o convite de um lavrador amigo:

    - O senhor, aceita tomar café na minha casa, é bem ali?

   A casinha feita de sapé, no meio do mato, comoveu o sacerdote. “Como esse homem, que trabalha, dia e noite, encontrará descanso numa morada tão pobre?”, inquiria-se, em pensamento. Ao entrar no local, ele percebeu o quanto se equivocara. Não havia luxo, mas o clima era contagiante. A bondade do preto-velho e de sua esposa parecia se impregnar pelas paredes e iluminar o visitante, tamanho o bem-querer dos anfitriões. Ainda admirado, o padre se sentou no banquinho feito de toco e observou a limpeza do fogão à lenha, o brilho das latinhas de alumínio que serviam de copo e a beleza impecável das panelas arriadas, expostas na prateleira de madeira. Quanto cuidado e capricho! Se o ambiente externo, perfumava o espírito de quem se achegava, o que dizer, então, do recôndito, onde o casal guardava os sentimentos?

  – Aqueles corações!, extasiava-se o sacerdote ao contar a ternura de ambos aos amigos. Diferentemente dos lares, que visitava para levar ânimo, padre Leônidas não precisou se esforçar na tarefa cristã naquele lugar. Dona Catariana e Seu Rafael viviam em paz e a cabeça branca do casal não revelava, apenas, a idade. Os cabelos adornavam moradas de grande sabedoria. Apesar do pouco estudo, vovô e vovó conheciam a terra, as matas, as águas e o poder da folha. Viviam como legítimos filhos de africanos. Reverenciavam a natureza na força de seus elementos, cantarolavam versos em Iorubá e jamais se esqueciam dos Orixás. A ancestralidade imprimia cicatrizes definitivas no espírito deles. O padre sabia disto e, de modo algum, cogitou a possibilidade de convertê-los à igreja, porque acreditava na liberdade e nunca imporia amarras a irmãos, que tiveram seus ancestrais presos aos grilhões do cativeiro. Em vez do discurso romano, animava-se em escutar as histórias vindas das tribos de “além mar”, sem se esquecer do Evangelho de Jesus.

   A diversidade espiritual tornava a conversa um prodígio de conhecimento e afeto. Nada era dito de qualquer jeito. As palavras vinham carregadas de axé e louvor. Padre Leônidas se rejubilava ao falar do Reino dos Céus prometido pelo Cristo. Dona Catarina ouvia atenta, deveras encantada pela doutrina de amor. Seu Rafael, não menos maravilhado, perguntava ao amigo católico qual o maior tesouro deixado por Jesus?
   – “Amai-vos uns aos outros como a ti mesmo”!

   A frase simples fez brilhar uma luz ambiente. Sensibilizado, o padre continuou: - Por esta máxima, vejo os enormes desafios que tenho na minha missão. Desde o seminário, trago a preocupação de ressuscitar esse sentimento nas pessoas e caminhando, muitas vezes, sinto-me frustrado.

   – Por quê?, quis saber o velho Rafael.

   – Tenho a sensação nítida de que falta algo. Nestes dias, uma mãe visitou a Igreja em busca de ajuda. Estava desesperada. O filho dela havia morrido. Falei-lhe de Deus e do mistério da fé, mas nada adiantou. Em prantos, ela só conseguia dizer: “acabou! A minha vida acabou junto com a do meu filho!” Ao ouvir aquelas palavras, senti um vazio enorme. A teologia que aprendi me pareceu alegórica demais para consolá-la.

    A velha Catarina olhou, vagarosamente, os olhos do padre e disse: – O senhor não é obrigado a ter todas as respostas. A cada passo que damos no universo, adquirimos algo que será importante lá na frente. Oxalá, todos os homens tivessem a consciência de que lhes falta alguma coisa. Sentimos, sempre, a ausência de elementos em que podemos tomar posse. Não damos conta de que nos faltam palavras e gestos de amor.

    O padre sorriu como de costume e com o discurso manso, agradeceu à sabedoria da grande amiga. Respondeu também que, intimamente, acreditava na continuidade da vida e que não se via no posto “de representante de Deus na Terra”. É verdade que o sacerdote não entrava em rixas contra os dogmas da Santa Sé, no entanto, não lhes dava exagerada publicidade. Preferia alimentar a dimensão do cuidado pelas criaturas do Pai. Em suas preleções, pedia que “os irmãos, ali reunidos, vivessem fraternamente e toda a noite, antes do sono, fizessem a si mesmos estas indagações: quantas lágrimas eu enxuguei? A quantas crianças providenciei o sorriso? A quantos doentes terminais devolvi a esperança na hora da morte? Assim, o padre vivia exortando a compaixão – essa formidável atmosfera da vida em que os homens se amam mutuamente.

    Passado algum tempo, Leônidas levou para Aruanda o amor incondicional por Jesus. Bem antes dele, coisa de uns 5 anos, haviam partido o velho Rafael e a velha Catarina. Já adoentado, o padre, em suas orações, recorreu ao Evangelho de João a fim de refletir.       Deparou-se, de olhos gastos pela avançada idade, com a seguinte passagem: “Na verdade, na verdade, eu vos digo: se um grão de trigo tomba na terra e não morre, ele permanece sozinho; mas se ele morre, ele aporta muitos frutos”. Ao ler a dita mensagem pela enésima vez, leu-a como nunca. Estava acompanhado. De um lado, o vovô; do outro, a vovó. Chorou muito. E vagarosamente, repetia: – o corpo é o grão que tomba e morre; já os frutos representam as conquistas do espírito, que semeou o bem sobre a terra fértil.



terça-feira, 22 de abril de 2014

O homem que se desviou da sua missão

   Um camarada me disse que se tivesse dinheiro nada o impediria de voltar à Bahia, para rever os orixás. Perguntei-lhe, espantado, se eles não vibravam em seu ori? Surpreso, ouvi a mais sonora lamentação de minha vida. “Que saudades de Ogum, meu nobre amigo. Das batalhas que vencíamos juntos, dos desvalidos que defendíamos no caminho, dos órfãos que amparávamos nas ruas e do ódio que cortávamos com a lâmina de Sua espada”. A memória nostálgica trazia, em si, enorme tristeza, lembrança dolorida, sentimento preso ao passado, de experiências marcantes e, quiçá, sem-iguais. É dura a sensação de tempo perdido, principalmente, quando se trata de uma mente sonhadora, cheia de planos e idéias altruístas. Lá se iam 12 anos, afastado da Boa-Terra. A promessa de uma vida melhor não vingara. Nem tanto pelo lado financeiro. Não ficara rico, é verdade, mas dava para seguir, sem sobressaltos. O problema estava no brilho dos olhos, que não se via mais. Aquele homem faceiro, bom de papo, bem humorado e místico havia sumido. Por onde andara esse tempo todo? Nunca poderia imaginar que um conselho ignorado custasse tão caro...

  Maravilhoso, o sol reinava absoluto no fim da tarde, bronzeando a miragem do infinito. Aproveitei a paisagem praiana para fazer uma oração ao mar. Agradecia ao povo das águas a proteção do ano inteiro. Era 31 de dezembro. O calendário estava prestes a virar, e a minha vida, também.  No inicio de janeiro, partiria para São Paulo. Estava decidido. A famosa metrópole me esperava. Não iria levar filho, nem mulher. Eles me esperariam. Afinal, a viagem havia sido planejada. Sem dúvidas, valeria a pena! No mais, eu traria no bolso uma vida melhor.

   Deitei na areia e dormi. Tive um sonho. Nele, Ogum aparecia paramentado com suas vestes. Inacreditável, então, foi a minha felicidade:

– Ogunhê, meu pai!, saudei-o de coração aberto.

    Aproximando-se, Ele riscou no chão com a ponta da espada: “Não vá. Aqui é o seu lugar. Quem lhe pede é minha mãe”. Ao ler aquilo, gritei: “Odoya”. As ondas se levantaram, os saveiros vinham ao longe, tremulando na tempestade. Filhos e mulheres, aflitos, esperavam a chegada de seus amados pescadores.
– Proteja-os, Iemanjá, pediam as vozes de fé.

  O mundo girava; na verdade, era a minha cabeça. Iansã cortou o céu com seus relâmpagos. O clarão me fez acordar. De olhos abertos, nada de temporal. Somente, a noite é que havia chegado. O vento fresco servia-me de calmante. Estava muito nervoso. O que fora aquilo? Por que Ogum me deixara tal mensagem? Os lapsos de memória me mostravam o desespero no mar revolto e o cais muito longe.

Não, não pode ser! Esperei tanto por essa viagem e agora vou abandoná-la por um sonho? Jamais!

   Em casa, às portas do Ano Novo, minha esposa aconselhava-me: – Ogum não traria uma mensagem de Iemanjá se não fosse coisa seria, homem.

  – Por que justo agora? Meus planos como ficam?

 – Ogum é o Senhor das Estradas, o trajeto que você quer fazer, Ele já conhece, alertava-me.

 – Está decidido: eu vou e volto de São Paulo rico! Oxum há de me mostrar os caminhos do ouro!

    Numa manhã qualquer, bem cedinho, levantei antes que o galo cantasse e fui à rua espairecer. A cabeça girava, cheia de dúvidas e a fé inabalável na viagem era só da boca para fora. Intimamente, o medo me tomava. Por três vezes, acordei assustado, com palpitações e desespero. Precisava de energia positiva. Frases cruzavam os meus pensamentos, sem que eu fizesse força para elaborá-las. Temi ficar maluco naquele estado de desequilíbrio. Recordei, num lapso, que em todas as angústias passadas, o mar sempre me acalmou. Aqueles fluídos vindos da imensidão foram sempre a mais doce erva, um calmante natural absolutamente eficaz. Enquanto, passeava os passos tornavam-se curtos, em tom demorado. Conforme a brisa me batia, as idéias eram aclaradas. Coisa estranha, e, ao mesmo tempo, consoladora. Com nitidez, eu percebia que alguém sussurrava. O som, quase imperceptível, ressoava num dito de alerta: “não vá”.
    
   A praia ficou para trás, atravessei a calçada e pensei na roda de capoeira. A poucos metros, havia uma. Era de lei. Todos os dias, desde que fizesse sol, a meninada se reunia para brincar um pouquinho de África e fazer viver a herança do povo que veio do lado de lá. Como eu amava aquela arte singela para o gosto e com reflexos pueris n’alma! Antes de chegar, olhei à esquerda: vi um caminho; à direita, atrás e à frente, também. Estive no meio da encruzilhada. Gritei para onde ir? Dos quatro cantos uma gargalhada e, no piscar de olhos, o movimento que sumia, em flashes, na dança inconfundível. Quem sorria? Quem dançava? Era Ele, o dono da rua.

   Segui em linha reta por intuição. A brincadeira estava armada, e os cânticos já se faziam ouvir. Retirei da bolsa a roupa branca; vesti-a em instantes, saudei os capoeiras, tratei de colocar um sorriso no rosto. Seria a minha despedida. Entrei na roda, com movimentos cadenciados, só para curtir o momento, deixar a melodia do berimbau invadir a mente e contagiar o corpo. Emocionado, esqueci a brincadeira e continuei a gingar; foi quando o jogo de cintura deu errado e, acidentalmente, levei uma senhora bênção. Parecia mentira, mera impressão. Antes fosse tudo isso. Mas, não era. No fundo, Ogum me dava o seu último aviso.
Teimoso, desconsiderei os fatos. A lembrança de minha mãe, uma sábia filha de Nanã, dizendo-me na infância: “resista o que for; não abandone a sua missão”, refletiu e apagou-se. Um pouco cansado, cumprimentei a minha gente e cuidei de abraçar um a um. Prometi retornar em breve. Aleguei que não conseguiria “ficar muito tempo longe”. Uma meia-verdade. A saudade já me acompanhava naquele momento. Todas aquelas figuras diziam algo importante para mim, porém o sonho de triunfar no rumo das coisas materiais falava mais alto, e de tão estridente mudava a minha respiração a ponto de me deixar ofegante. Com a velha mochila nas costas, batia às mãos e escutei o desejo sincero: “Ogunhê, meu Pai, proteja o nosso amigo”.

   De retorno a casa, resolvi mudar o percurso habitual. Por conta própria, quis passar pela estrada de ferro. Vagarosamente, caminhei. Nenhuma intuição me veio. Por que viria? Não estava eu tão decidido, senhor das minhas ações, conhecedor do destino? As energias dos Orixás percorrem a Terra, quem puder ver e não quiser, está selando os seus caminhos. Se Ogum jamais aceitou uma coroa de jóias, devido a sua humildade, não devia eu, um simples filho, desejá-la por ganância. Não devia, é verdade. No entanto, desejei...

  ... Por não saber o que é bom. A simplicidade da vida jamais foi motivo de lamento pelos cantos. Minha mulher cozinhava para fora, o trabalho na fábrica de metalurgia sempre me trouxera um pouco mais que o necessário, e o meu filho, além dos estudos, brincava como toda criança.

  No dia do vôo, ventava demais. Havia um temporal armado nas nuvens. Enquanto, as famílias se abraçavam, uma eletricidade rasgou o firmamento, pondo medo no semblante das pessoas. Eu, que pela primeira vez subiria num avião, temi a estréia. Em silencio, roguei aos ventos que desviassem as nuvens da minha rota. Não fui atendido, e a decolagem foi adiada. Exatas cinco horas precederam a partida. Bem nervoso, apertava, num abre e fecha, as minhas mãos frias e esbranquiçadas. A respiração, em face da angústia, também não era das melhores. O peito, como se tivesse um peso em cima, fazia-me evitar qualquer conversa. Apertei a medalhinha do cordão para rezar. Tentei imaginar uma torrente de luz que me envolvesse; não consegui. O máximo que via era uma espada riscando traços sobre a cor cinza do céu.

   Viajei no tempo, sem me dar conta do que acontecia. O desgaste emocional fora tamanho que só me restou cair no sono. Juro de coração: até fiz força para resistir, mas não deu. O cansaço, certamente, era bem maior do que a minha vontade. Dos males, o menor. Dei trégua à mente tão açoitada pelos pensamentos – vacilantes e desobedientes, quase uns azougues, coisa de enlouquecer.

   Ao acordar, já em terra firme, lembrei-me, com alguma nitidez, do sonho que tive. E nisto não há surpresa. Por mais paradoxal que possa parecer, enquanto eu estava no ar, a epopéia onírica me levava às margens de um rio, onde se podia ouvir um canto divinal. Maravilhado, caminhei fazendo os ouvidos de bússola; quando de repente, vi sendo arrastada pelas correntezas uma coroa que brilhava intensamente. Sai correndo, aos gritos de: “É ouro, é ouro!” Mergulhei para alcançá-la, e a jóia desapareceu como miragem.

  A cena viva nas águas doces me trouxe um presságio desanimador. Que intuição pura! De tão realística chegava dar medo. Pensativo, apanhei a bagagem e comecei a fitar o relógio enquanto o meu futuro colega de trabalho não aparecia para me levar à hospedagem. O combinado era: assim que eu chegasse, ele estaria apostos. Ocorreu, justamente, o contrário – esperei por duas horas, que mais pareciam quatro, tamanha a minha inquietação.

   Quando, enfim, Manoel – eis o nome do “pontual funcionário” – chegou, respirei aliviado. Embora, ele tenha justificado o atraso, confesso: não dei muita importância, respondi com o cordial “sem problemas” e, logo, a prosa ganhou novo rumo. Dentro do carro, conversamos sobre as atividades da empreiteira e os motivos que me fizeram aceitar a proposta de outra firma, longe da Bahia. Ficou assinada pelas minhas palavras a motivação única e impreterível da mudança: “dinheiro, grana, verba...”. Nada além dessa secura espiritual.

  Talvez, o gentio anfitrião tenha ficado zonzo com a dimensão da ganância. Quem sabe eu, noutra época, também ficasse. Agora, o que se via era um filho de Ogum acorrentado pela ambição. Não do Orixá, isso jamais, mas a sua: triste homem escritor de destinos, não sabe o poder que possuí. Fazer o quê? Antes muitas coisas, inclusive, tomar a decisão certa. A prosperidade mora no mesmo lugar desde sempre e não se desloca, quem quiser desfrutá-la, siga a dica: que vá até ela. Eu a encontrei pertinho de mim, mas resolvi buscar uma maior, talvez, a dos outros. E se é dos outros não atende as nossas medidas. No âmago dos sentimentos – um lugar interno, onde somente nós podemos visitar – cresce a sensação de vazio.

  Você se prepara para dormir. O apartamento é bom, a cama macia, não falta água, nem comida. O conforto está por toda parte. Como justificar a tristeza e os calafrios? Observo ao redor e o que tenho?  Cozinha sem tempero, casa que não tem infância, vizinhança sem amigos.   

  E assim se deu a última década da minha vida. Envelheci demais. Tomei uma aparência soturna. Perdi o ânimo de ser feliz. Até os 6 anos, desde a partida, o pouco que me alegrava eram as ligações diárias para Bahia. Depois, nem isso. Mariana, minha bela esposa, tornou-se ex. Não agüentou a solidão. Graças a Oxalá, ela criou o nosso filho dignamente. Pelas notícias que me chegavam o “meu menino” havia se tornado um homem bonito, estudioso e um grande companheiro da mãe. Menos mal! Conseguiu algo que eu não fora capaz.


  Hoje, em 2014, estou de volta à Bahia. Que o Senhor do Bonfim me proteja! Quero dar voz a minha missão. Fazê-la ecoar dentro de mim. E nunca mais abandoná-la. Espero que dê tempo. De certo, hei de merecer um recomeço. 

segunda-feira, 14 de abril de 2014

A mediunidade, o choro da menina e o depoimento da criança

      Ajoelhado, o menino buscava conforto para as suas dores. Os olhos infantis fitavam a imagem do Cristo, encostada na parede, e derramavam gotas de esperança nas páginas do Evangelho de Mateus. Nenhuma palavra, naquele instante, podia ser ouvida. A criança, em profunda meditação, recorria ao silêncio. Surpreendentemente, o pequeno filho de Deus suportava as misérias que o assolavam sem murmurar uma única queixa. Quando, enfim, abriu os lábios, leu com a mesma voz cândida, que sempre recorria ao Pai-Nosso: “Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados...”. Antes de se levantar, a pequena criatura, de semblante renovado pela prece, bebeu a água iluminada por seus mentores espirituais.

    Ao sair do quarto, que dividia com seu irmão, ele procurou a porta da rua e foi para praça brincar. Com a bola presa entre o corpo e as mãos, caminhava até o campinho de futebol. No meio do percurso, a terna alma deparou-se com uma jovem tristonha e solitária, sentada no banco de concreto da paisagem urbana. Como se pudesse mensurar em seu próprio peito o sofrimento alheio, o nobre amigo cumpriu mais uma etapa de sua admirável jornada. Recordou-se da cena em que Jesus perguntara a Maria de Magdala: “Mulher, por que choras?”, e se aproximou com intuito pueril, ciente de que era, tão-somente, mais um entre tantos colaboradores da Estrela de Nazaré.

    O franzino e meigo camarada sentiu por aquela moça, na plenitude da vida física, um amor cujos homens adultos não poderiam entender. Ele se aproximou e através da mediunidade enxergou um longo estado de depressão. Apesar da beleza indígena, faltava brilho a jovem. Suas bochechas eram pálidas, o cabelo sem viço e os olhos – ah, os olhos! – pareciam sem vida. Com duas balas no bolso, o menino ofereceu uma à bela cabocla. Ela aceitou, agradeceu e perguntou-lhe qual o seu nome? Explicativo, ele respondeu: “Pedro, e foi a minha mãe quem escolheu”.

  - Muito bonito, elogiou a jovem.

   Agora, feliz pela oportunidade de falar àquele coração, que se mostrava receptivo, Pedrinho conversou feito gente grande:

      - Assim como você se sente, eu também me sinto. Dói muito a sensação de estar só, mesmo quando acompanhado por uma multidão, mas há nisso uma oportunidade santa para nos conhecermos melhor. Há tempos, deixei de me lamentar. Não posso viver contra a minha natureza, a fim de agradar os outros. Prefiro agradá-los por intermédio do amor. Muitas pessoas dizem que preciso conhecer o mundo, passear, freqüentar festas e lidar com gente da minha idade. E eis que eu sempre replico: apresentem-me os depressivos, os desesperados, os que curtem as dilacerantes misérias da alma e, assim, vocês não só me ajudarão a conhecer o mundo, como também a modificá-lo. Não quero fugas!

    A jovem recebeu o conforto da mensagem inesperada e se identificou, profundamente, com a filosofia que relatava a pureza e a sabedoria de uma criança. Menos tímida, ela retirou o espinho do medo, que lhe sufocava a auto-estima e resolveu falar:

  - Perdi o ânimo de viver. Não tenho motivação para nada. Nem da minha aparência cuido mais. Fico em casa, presa a uma vontade, sem-fim, de me isolar. Cansei da paisagem que não muda, das pessoas que dizem sempre a mesma coisa e da falta de acontecimentos novos.

   Pedrinho lamentou o clima sombrio que a envolvia, foi ameaçado por alguns pensamentos a recuar e abandoná-la ali, na amargura. Num gesto de doçura, o menino ignorou a má sensação e pegou a mão da jovem. Estava gelada e o pulso, agitado. Olhando-a, fixamente, ele pediu atenção para, em seguida, levá-la às lágrimas:

- O materialismo não lhe basta. Você pode buscar refúgio no consumo de roupas, jóias e na busca de grandes paixões, mas não encontrará. Neste exato segundo, ressoa dentro do seu íntimo o eco do mundo invisível.

   Surpresa, a linda cabocla questionou: - como sabe o que sinto?

    Pedrinho lhe saciou a dúvida: - Eu também vivo esta situação. Passado tanto tempo, aprendi que preciso ter paciência. A dor será superada. Não posso deixar o pânico invadir a minha mente. A série de ataques espirituais nos ensina a ter autocontrole e a redobrar o ímpeto nos caminhos da fé. O médium, em prova, é submetido ao estresse. Se ele não põe prazo para as dificuldades se afastarem e luta - sem desespero, com os recursos do amor, a vitória, certamente, virá. Quem aprende a se conhecer, cria forças para servir aos semelhantes no terreno da caridade. É simples assim, não se espante! Doamos aquilo que temos. E feliz aquele que descobre a paz dentro de si, porque terá, sempre, uma palavra de conforto para doar.

   - Tenho perdido noites de sono inteira por não conseguir me concentrar. Os meus pensamentos parecem saturados, não sei mais o que dizer a mim mesma, contou a jovem.

   Pedrinho retornou a fala: - É você, em espírito, quem grita; e o seu corpo, conseqüentemente, sofre movido por uma grande sensibilidade, que o faz captar até “o vento que passa”. Por favor, não se desespere. Enquanto, muitas perdem a saúde brigando por riquezas e poder, a sua delicada alma clama e pede a oportunidade de se dedicar ao amor. Creia em Deus! A hora está próxima e você há de encontrar a bênção que tanto pede.

A moça abraçou o menino como se ele fosse o seu próprio filho e acreditou que aquela linda mensagem abriria os seus caminhos espirituais.