Haroldo, jovem rebelde,
passou a sentar-se nas fileiras de uma casa Espírita a convite de um amigo.
Durante quatro semanas consecutivas, assistiu, atentamente, o conteúdo das
palestras dominicais. Ao fim das jornadas, de no máximo 1 hora, ele virava às
costas e ia embora. O máximo que fazia era desejar “boa noite” para alguém que
lhe atravessasse o caminho.
Na
última das exposições, das quais já se tornara participe assíduo, Haroldo foi
interpelado pelo companheiro, cuja amizade o havia levado àquele lar de
caridade. O tema da palestra, recém-terminada, ainda fervilhava no coração do
jovem. Afogueado pelo próprio temperamento ansioso, ele não conseguia modular,
numa freqüência harmoniosa, os pensamentos. Sofria entre o êxtase da descoberta
e o barulho estridente do chamado, com aparência de reprimenda, em virtude de
sua enorme cupidez.
Quando a água fluidificada já agia nos
recônditos do organismo físico, o ânimo do rapaz serenou e, num rápido
exercício de reminiscência, as temáticas das exposições lhe vieram à cabeça. No primeiro domingo, o assunto trazido à baila
foi o perdão; na semana seguinte, o palestrante, da vez, falou de amor;
na terceira ocasião, a caridade tomou conta do cenário e,
por fim, um senhor dissertou sobre a Justiça Divina.
Haroldo tentou reunir todos os temas num só
raciocínio para proferir um parecer definitivo ao amigo. Assim, meio atônito, o
jovem bradou:
– Isso aqui,
referindo-se ao Centro, – é uma escola de utopias. – Vocês vendem idéias
fantasiosas. Senti-me coagido ao sacerdócio da santidade. O que querem, afinal?
Transformar homens imperfeitos e que pecam, a cada dia mais, em anjos?
– Exatamente, disse
Gabriel, o devotado companheiro.
Haroldo riu sem
disfarçar o espanto e voltou à carga das inquirições, com certo sarcasmo:
– Por que eu não vejo
as suas asas, nobre amigo?
De prontidão, veio a
resposta sensata: – Pois elas não estão prontas...
Em ato continuo,
ocorreu o espanto: – Como assim?, perguntou Haroldo, diante do que ouvia.
A explicação fez-se meticulosa:
– O Espiritismo não
prepara uma armadura alada para colocar nas costas de seus adeptos. As asas do
anjo ganham forma a partir de singelas plumas, conquistadas no cotidiano. Não
perca tempo averiguando as condições de vôo alheio. Se fulano tem ou não asas,
pouco importa. Quando você estiver no exercício de construção da sua
angelitude, uma vontade inabalável de auxiliar os outros irá lhe invadir. Então,
em vez de uma competição para aferir quem possui a plumagem mais bonita, haverá
um vôo harmônico, similar ao das andorinhas que, em conjunto, fazem suas
viagens no azul do Céu.
– E o que representam
essas plumas?, quis saber Haroldo.
– Os pormenores do
perdão, do amor, da caridade e da Justiça Divina.
– Esses não foram os
temas das palestras?, assustou-se o jovem.
– Correto, afirmou
Gabriel. – Mas, em 1 hora, é impossível dissecar assuntos tão amplos. Cabe a
você desvendá-los, um a um, com a mesma destreza do alfaiate que tece,
minuciosamente, cuidando de cada detalhe, as plumas das asas de um anjo para
uma festa à fantasia. No seu caso, porém, não há fantasia alguma. As plumas são
reais e invisíveis ao mesmo tempo. Contêm, em si, beleza rara, todavia você não
irá se deleitar com os elogios, porque, no meio da grande festa – que é a Vida
– haverá muitas trevas e outras vezes, as pessoas, em volta, usarão máscaras, e
tudo caminhará para que o seu trabalho íntimo não seja visto.
– E o que fazer para
adquirir tais plumas?
– Hoje, o nosso coração
faz uma série de exclusões, como quem diz: “para amar beltrano não posso amar sicrano”. Vivemos montando trincheiras que põe em lados apostos grupos
separatistas. Cremos que para abrigar alguém em nosso âmago, devemos desalojar
outro. Conhecemos, tão-somente, o amor em seu aspecto singular; limitamos o
espaço dos nossos sentimentos. O anjo, contudo, fala a linguagem do plural. O
Espírito puro tem amores, e não, um amor solitário, pois certo dia, na condição
de homem, ele dilatou as fronteiras do próprio coração e, como recompensa
meritória, passou a amar o inimigo com a intensidade que, outrora, não conseguia
amar o próprio filho.
Comovido,
Haroldo esqueceu-se do orgulho e recolheu a primeira pluma de sua futura asa.
Num preito de gratidão, sentiu – em atitude espontânea – o amor verdadeiro pelo
amigo, que o instruía no inicio de uma nova era espiritual.
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