segunda-feira, 28 de julho de 2014

Não desista...

 - Por que insiste em cuidar de mim? Já não tenho mais jeito. Sou caso perdido. Nem mesmo os meus familiares se importam com o que eu sinto. Vá, menino; siga a sua vida, não perca tempo com essa velha ranzinza e cheia de manias. Você não tem motivos para se preocupar comigo. Conheceu-me há pouco tempo, não temos laços afetivos. Deixe de bobagens...
Conforme a senhora encontrava desculpas para se mutilar emocionalmente, Lucas sorria em segredo, cheio de compreensão. Nenhum argumento o faria recuar. Por quê? Ele amava demais. Aos seus olhos, muitas mulheres já haviam se tornado mães; principalmente, as que traziam no coração tristezas profundas, que desafiavam as intervenções psiquiátricas. Desacostumadas à doação incondicional, muitas ficavam assustadas com a dedicação do jovem, uma vez que nem em seus filhos encontravam tamanho zelo.  
Dona Júlia já se entregara às dores e não admitia que ninguém - ainda mais um jovem pretensioso, nas palavras dela -, viesse lhe devolver a lucidez. Como argumento fatal, ela tentou congelar de vez o calor humano que ousara tocá-la.
  – Escute aqui, rapazinho, você não conhece a metade dos meus sofrimentos. Se os conhecesse, duvido que estivesse aqui me infernizando. Teria, no mínimo, um pouco de educação. O que pode uma velha, de 70 anos, esperar da vida?  Quando moça não fui feliz; o que a juventude não pode fazer por mim, a velhice certamente também não poderá.
Quanto maior ficava o problema, mais Lucas se envolvia de coragem. Calejada por tanto se maltratar, D. Júlia tinha convicção de que as pessoas boas não existiam e que as tentativas de auxílio eram frágeis discursos, incapazes de resistir ao seu verbo mordaz. Pela primeira vez, ela falhara na estratégia melancólica que fazia qualquer um sair zonzo. Não raro, vizinhos e parentes ficavam frustrados e diziam: “essa não tem jeito, só a morte...”.
O substantivo derradeiro era o recurso preferido de D. Júlia. Os netos mal podiam se aproximar que ela emendava qualquer pergunta com a secura peculiar – “estou só esperando...”. Ao perceber este vazio, Lucas falou pausadamente: “somos todos astronautas do além”. A senhora olhou-o com rispidez, sem nada entender, como quem afirma não ter tempo para maluquices.
- Moleque, por acaso, você quer zombar de mim?
- Não, senhora, disse ele. – Quero lhe mostrar novos mundos. Um amigo da espiritualidade, chamado Irmão-X, que se apresentou a Chico Xavier, contou-nos em prosa a advertência de Jesus a Pedro: “sombra por sombra, dá sempre um total de trevas”.
Assustada, a personalidade tormentosa fez deboche. – Era só o que me faltava. Um moleque querendo provar a existência de espíritos, e o pior... De espíritos filosóficos! Tenha santa paciência. Na minha situação, já faço um esforço tremendo para continuar acreditando em Deus...
O querido sonhador recorreu a carta apostólica de Tiago para confirmar que o corpo sem o espírito é obra morta. D. Júlia balbuciou palavras quase inaudíveis para extravasar o seu descontentamento. Firme, Lucas persistiu:
- A senhora está recebendo uma oportunidade de repensar a vida e refazê-la sobre outros contornos. Os amigos não lhe abandonaram. Quem nos abandona são os ditos conhecidos. Amigo de verdade não desiste de nós, eles fazem como o bom samaritano que, mesmo sem motivações aparentes, socorre o doente no caminho, pois como um astronauta transcende os liames do céu e crê na irmandade das almas que se transportam pelo espaço.
- Por que diz isso, menino? Procure um psiquiatra. Tão jovem... E lunático!
Chegara, enfim, a hora certa. Lucas pediu: - conte-me, D. Júlia, sobre o sonho que teve esta noite com o seu filho adotivo.
Ela gelou. Como alguém poderia saber do que se passara em seu sono? Vasculhou a memória, e não se lembrou de comentário algum. Nem as árvores do quintal, suas únicas companheiras, haviam lhe escutado falar a respeito da viagem onírica. A visão extracorpórea ainda fazia sangrar as chagas profundas do perispírito. D. Júlia desmoronou. A pedra impenetrável banhava-se em lágrimas que como as águas de um rio vão levando as impurezas do caminho. Através do pranto, veio a história.
- Eu vi o meu querido filho, em baixo de um coqueiro, à noite, fazendo fogueira para espantar o frio. Quando eu o gritei pelo nome – Zezinho! – ele me perguntou: “a senhora está bem?”. Como me doeu ver aquela cena. Nos primeiros anos de casada, o meu marido foi a um orfanato para adotá-lo após muitas visitas. Fui terminantemente contra. Queria frutos do meu ventre. Egoísta, maldizia a possibilidade de criar filhos dos outros. Mas, o Marcus, tão generoso, apaixonou-se por aquele menino e o trouxe para casa. Com o tempo, fui me acostumando, sem nutrir nenhum bom sentimento pela criança. Depois, fiquei grávida por três vezes num período de 8 anos. A minha prole estava feita da maneira tradicional. Mimei Tomás, Leonardo e Fábio, ao passo que oprimia e escravizava o Zezinho. Há três anos, ele se foi e ficou um vácuo gigantesco de saudade e remorso. Dos 4, sempre o mais carinhoso, prestativo e leal. A prova disso é que estou velha, e os outros não se importam comigo.
Lucas aproveitou o ensejo para revelar o encontro que tivera com Zezinho. D. Júlia tentou, é verdade, duvidar. Como pode alguém conversar com mortos? O sonho, para ela, havia sido um desses fenômenos anormais que a ciência não pode explicar. Atribuía, porém, grande culpa a si mesma e imaginava que os alertas espirituais eram, tão-somente, o peso de sua consciência endividada. Apesar do esforço, não foi possível negar as evidências. Lucas lhe contou particularidades ímpares da vida de Zezinho que a madrasta segredava com esforço incomum.
Em desatino e impulsiva, a mãe abandonada pela prole legítima bradou: - O que ele quer agora, me jogar na cara os maus tratos que o submeti?
Absolutamente tranqüilo, Lucas contrapôs a idéia de vingança: - De forma alguma; ele só revelou o imenso amor que sente pela senhora e a gratidão duradoura desde o tempo em que foi acolhido em sua casa.
Aceitando o diálogo mediúnico, por não ver meio de negá-lo, D. Júlia duvidou da bondade de Zezinho: - É impossível que ele nutra sentimentos bons para comigo; eu lhe humilhei o quanto pude. Perdoar assim ultrapassa a utopia...
- O seu filho me confidenciou que permanece, em preces, pela mãe e que no dia certo, estará a sua espera no plano espiritual. Para que o reencontro se confirme, Zezinho pediu que a senhora procurasse o orfanato, onde ele fora adotado para dar início a um trabalho de devoção e caridade. Disse também que fosse empregado nesta tarefa, o dinheiro do patrimônio deixado pelo seu marido. É um pedido também do Dr. Marcus, que gostaria de ver o suor de tanto trabalho empregado em favor das crianças. O ex-marido da senhora sofre com a estagnação dos filhos e o uso estritamente particular da herança.
Ao ouvir outras pequenas e importantes revelações acerca da personalidade do homem que aprendera a amar, D. Júlia sentiu um brilho reativar as atividades supremas do coração e percebeu que ela não era velha, e sim, uma recém-nascida para as coisas do espírito. Com o chacra cardíaco dilatado pelas luzes antes desconhecidas, ela fez um agradecimento seguido de um pedido:
 - Lucas, muito obrigado por não ter desistido de mim. Se não fosse a sua heróica atenção, eu continuaria por aqui morta antes mesmo de morrer. Por favor, ajude-me a concretizar o sonho de Zezinho e Marcus.

Esbanjando ternura, o jovem abraçou-a, como quem diz “eu aceito”. 

Um comentário:

  1. LAMENTÁVEL QUE A IGNORÂNCIA DIFICULTE O DESCORTINAR DO CRESCIMENTO AOS QUE MAIS NECESSITAM, TORNANDO O CRESCIMENTO LENTO, BLOQUEANDO A PASSAGEM DE LUZ!!

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