- Por que insiste em cuidar de mim? Já não
tenho mais jeito. Sou caso perdido. Nem mesmo os meus familiares se importam
com o que eu sinto. Vá, menino; siga a sua vida, não perca tempo com essa velha
ranzinza e cheia de manias. Você não tem motivos para se preocupar comigo.
Conheceu-me há pouco tempo, não temos laços afetivos. Deixe de bobagens...
Conforme
a senhora encontrava desculpas para se mutilar emocionalmente, Lucas sorria em
segredo, cheio de compreensão. Nenhum argumento o faria recuar. Por quê? Ele
amava demais. Aos seus olhos, muitas mulheres já haviam se tornado mães;
principalmente, as que traziam no coração tristezas profundas, que desafiavam
as intervenções psiquiátricas. Desacostumadas à doação incondicional, muitas
ficavam assustadas com a dedicação do jovem, uma vez que nem em seus filhos
encontravam tamanho zelo.
Dona
Júlia já se entregara às dores e não admitia que ninguém - ainda mais um jovem
pretensioso, nas palavras dela -, viesse lhe devolver a lucidez. Como argumento
fatal, ela tentou congelar de vez o calor humano que ousara tocá-la.
– Escute aqui, rapazinho, você não conhece a
metade dos meus sofrimentos. Se os conhecesse, duvido que estivesse aqui me
infernizando. Teria, no mínimo, um pouco de educação. O que pode uma velha, de
70 anos, esperar da vida? Quando moça
não fui feliz; o que a juventude não pode fazer por mim, a velhice certamente
também não poderá.
Quanto
maior ficava o problema, mais Lucas se envolvia de coragem. Calejada por tanto
se maltratar, D. Júlia tinha convicção de que as pessoas boas não existiam e que as tentativas de auxílio eram
frágeis discursos, incapazes de resistir ao seu verbo mordaz. Pela primeira
vez, ela falhara na estratégia melancólica que fazia qualquer um sair zonzo. Não
raro, vizinhos e parentes ficavam frustrados e diziam: “essa não tem jeito, só
a morte...”.
O
substantivo derradeiro era o recurso preferido de D. Júlia. Os netos mal podiam
se aproximar que ela emendava qualquer pergunta com a secura peculiar – “estou
só esperando...”. Ao perceber este vazio, Lucas falou pausadamente: “somos
todos astronautas do além”. A senhora olhou-o com rispidez, sem nada entender,
como quem afirma não ter tempo para
maluquices.
-
Moleque, por acaso, você quer zombar de mim?
-
Não, senhora, disse ele. – Quero lhe mostrar novos mundos. Um amigo da
espiritualidade, chamado Irmão-X, que se apresentou a Chico Xavier, contou-nos
em prosa a advertência de Jesus a Pedro: “sombra por sombra, dá sempre um total
de trevas”.
Assustada,
a personalidade tormentosa fez deboche. – Era só o que me faltava. Um moleque
querendo provar a existência de espíritos, e o pior... De espíritos
filosóficos! Tenha santa paciência. Na minha situação, já faço um esforço
tremendo para continuar acreditando em Deus...
O
querido sonhador recorreu a carta apostólica de Tiago para confirmar que o corpo sem o espírito é obra morta. D.
Júlia balbuciou palavras quase inaudíveis para extravasar o seu
descontentamento. Firme, Lucas persistiu:
-
A senhora está recebendo uma oportunidade de repensar a vida e refazê-la sobre
outros contornos. Os amigos não lhe abandonaram. Quem nos abandona são os ditos conhecidos. Amigo de verdade não
desiste de nós, eles fazem como o bom samaritano que, mesmo sem motivações
aparentes, socorre o doente no caminho, pois como um astronauta transcende os
liames do céu e crê na irmandade das almas que se transportam pelo espaço.
-
Por que diz isso, menino? Procure um psiquiatra. Tão jovem... E lunático!
Chegara,
enfim, a hora certa. Lucas pediu: - conte-me, D. Júlia, sobre o sonho que teve
esta noite com o seu filho adotivo.
Ela
gelou. Como alguém poderia saber do que
se passara em seu sono? Vasculhou a memória, e não se lembrou de comentário
algum. Nem as árvores do quintal, suas únicas companheiras, haviam lhe escutado
falar a respeito da viagem onírica. A visão extracorpórea ainda fazia sangrar
as chagas profundas do perispírito. D. Júlia desmoronou. A pedra impenetrável
banhava-se em lágrimas que como as águas de um rio vão levando as impurezas do
caminho. Através do pranto, veio a história.
-
Eu vi o meu querido filho, em baixo de um coqueiro, à noite, fazendo fogueira
para espantar o frio. Quando eu o gritei pelo nome – Zezinho! – ele me perguntou: “a senhora está bem?”. Como me doeu
ver aquela cena. Nos primeiros anos de casada, o meu marido foi a um orfanato
para adotá-lo após muitas visitas. Fui terminantemente contra. Queria frutos do
meu ventre. Egoísta, maldizia a possibilidade de criar filhos dos outros. Mas,
o Marcus, tão generoso, apaixonou-se por aquele menino e o trouxe para casa.
Com o tempo, fui me acostumando, sem nutrir nenhum bom sentimento pela criança.
Depois, fiquei grávida por três vezes num período de 8 anos. A minha prole
estava feita da maneira tradicional. Mimei Tomás, Leonardo e Fábio, ao passo
que oprimia e escravizava o Zezinho. Há três anos, ele se foi e ficou um vácuo
gigantesco de saudade e remorso. Dos 4, sempre o mais carinhoso, prestativo e
leal. A prova disso é que estou velha, e os outros não se importam comigo.
Lucas
aproveitou o ensejo para revelar o encontro que tivera com Zezinho. D. Júlia
tentou, é verdade, duvidar. Como pode
alguém conversar com mortos? O sonho, para ela, havia sido um desses
fenômenos anormais que a ciência não pode explicar. Atribuía, porém, grande
culpa a si mesma e imaginava que os alertas espirituais eram, tão-somente, o
peso de sua consciência endividada. Apesar do esforço, não foi possível negar
as evidências. Lucas lhe contou particularidades ímpares da vida de Zezinho que
a madrasta segredava com esforço incomum.
Em
desatino e impulsiva, a mãe abandonada pela prole legítima bradou: - O que ele
quer agora, me jogar na cara os maus tratos que o submeti?
Absolutamente
tranqüilo, Lucas contrapôs a idéia de vingança: - De forma alguma; ele só
revelou o imenso amor que sente pela senhora e a gratidão duradoura desde o
tempo em que foi acolhido em sua casa.
Aceitando
o diálogo mediúnico, por não ver meio de negá-lo, D. Júlia duvidou da bondade
de Zezinho: - É impossível que ele nutra sentimentos bons para comigo; eu lhe
humilhei o quanto pude. Perdoar assim ultrapassa a utopia...
-
O seu filho me confidenciou que permanece, em preces, pela mãe e que no dia
certo, estará a sua espera no plano espiritual. Para que o reencontro se
confirme, Zezinho pediu que a senhora procurasse o orfanato, onde ele fora
adotado para dar início a um trabalho de devoção e caridade. Disse também que
fosse empregado nesta tarefa, o dinheiro do patrimônio deixado pelo seu marido.
É um pedido também do Dr. Marcus, que gostaria de ver o suor de tanto trabalho
empregado em favor das crianças. O ex-marido da senhora sofre com a estagnação
dos filhos e o uso estritamente particular da herança.
Ao
ouvir outras pequenas e importantes revelações acerca da personalidade do homem
que aprendera a amar, D. Júlia sentiu um brilho reativar as atividades supremas
do coração e percebeu que ela não era velha, e sim, uma recém-nascida para as
coisas do espírito. Com o chacra cardíaco dilatado pelas luzes antes
desconhecidas, ela fez um agradecimento seguido de um pedido:
- Lucas, muito obrigado por não ter desistido
de mim. Se não fosse a sua heróica atenção, eu continuaria por aqui morta antes
mesmo de morrer. Por favor, ajude-me a concretizar o sonho de Zezinho e Marcus.
Esbanjando
ternura, o jovem abraçou-a, como quem diz “eu aceito”.
LAMENTÁVEL QUE A IGNORÂNCIA DIFICULTE O DESCORTINAR DO CRESCIMENTO AOS QUE MAIS NECESSITAM, TORNANDO O CRESCIMENTO LENTO, BLOQUEANDO A PASSAGEM DE LUZ!!
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