Um camarada me disse
que se tivesse dinheiro nada o impediria de voltar à Bahia, para rever os
orixás. Perguntei-lhe, espantado, se eles não vibravam em seu ori? Surpreso,
ouvi a mais sonora lamentação de minha vida. “Que saudades de Ogum, meu nobre
amigo. Das batalhas que vencíamos juntos, dos desvalidos que defendíamos no
caminho, dos órfãos que amparávamos nas ruas e do ódio que cortávamos com a
lâmina de Sua espada”. A memória nostálgica trazia, em si, enorme tristeza, lembrança
dolorida, sentimento preso ao passado, de experiências marcantes e, quiçá,
sem-iguais. É dura a sensação de tempo perdido, principalmente, quando se trata
de uma mente sonhadora, cheia de planos e idéias altruístas. Lá se iam 12 anos,
afastado da Boa-Terra. A promessa de uma vida melhor não vingara. Nem tanto
pelo lado financeiro. Não ficara rico, é verdade, mas dava para seguir, sem
sobressaltos. O problema estava no brilho dos olhos, que não se via mais.
Aquele homem faceiro, bom de papo, bem humorado e místico havia sumido. Por
onde andara esse tempo todo? Nunca poderia imaginar que um conselho ignorado custasse
tão caro...
Maravilhoso, o sol reinava absoluto no fim da
tarde, bronzeando a miragem do infinito. Aproveitei a paisagem praiana para
fazer uma oração ao mar. Agradecia ao povo das águas a proteção do ano inteiro.
Era 31 de dezembro. O calendário estava prestes a virar, e a minha vida,
também. No inicio de janeiro, partiria
para São Paulo. Estava decidido. A famosa metrópole me esperava. Não iria levar
filho, nem mulher. Eles me esperariam. Afinal, a viagem havia sido planejada.
Sem dúvidas, valeria a pena! No mais, eu traria no bolso uma vida melhor.
Deitei na areia e
dormi. Tive um sonho. Nele, Ogum aparecia paramentado com suas vestes.
Inacreditável, então, foi a minha felicidade:
– Ogunhê, meu pai!,
saudei-o de coração aberto.
Aproximando-se, Ele riscou no chão com a
ponta da espada: “Não vá. Aqui é o seu lugar. Quem lhe pede é minha mãe”. Ao
ler aquilo, gritei: “Odoya”. As ondas se levantaram, os saveiros vinham ao
longe, tremulando na tempestade. Filhos e mulheres, aflitos, esperavam a
chegada de seus amados pescadores.
– Proteja-os, Iemanjá,
pediam as vozes de fé.
O mundo girava; na
verdade, era a minha cabeça. Iansã cortou o céu com seus relâmpagos. O clarão
me fez acordar. De olhos abertos, nada de temporal. Somente, a noite é que
havia chegado. O vento fresco servia-me de calmante. Estava muito nervoso. O
que fora aquilo? Por que Ogum me deixara tal mensagem? Os lapsos de memória me
mostravam o desespero no mar revolto e o cais muito longe.
– Não, não pode ser! Esperei tanto por essa
viagem e agora vou abandoná-la por um sonho? Jamais!
Em casa, às portas do Ano Novo, minha esposa aconselhava-me: –
Ogum não traria uma mensagem de Iemanjá se não fosse coisa seria, homem.
– Por que justo agora? Meus planos como ficam?
– Ogum é o Senhor das Estradas, o trajeto que você quer fazer, Ele
já conhece, alertava-me.
– Está decidido: eu vou e volto de São Paulo rico! Oxum há de me
mostrar os caminhos do ouro!
Numa manhã qualquer, bem cedinho, levantei antes que o galo
cantasse e fui à rua espairecer. A cabeça girava, cheia de dúvidas e a fé
inabalável na viagem era só da boca para fora. Intimamente, o medo me tomava.
Por três vezes, acordei assustado, com palpitações e desespero. Precisava de
energia positiva. Frases cruzavam os meus pensamentos, sem que eu fizesse força
para elaborá-las. Temi ficar maluco naquele estado de desequilíbrio. Recordei,
num lapso, que em todas as angústias passadas, o mar sempre me acalmou. Aqueles
fluídos vindos da imensidão foram sempre a mais doce erva, um calmante natural
absolutamente eficaz. Enquanto, passeava os passos tornavam-se curtos, em tom
demorado. Conforme a brisa me batia, as idéias eram aclaradas. Coisa estranha,
e, ao mesmo tempo, consoladora. Com nitidez, eu percebia que alguém sussurrava.
O som, quase imperceptível, ressoava num dito de alerta: “não vá”.
A praia ficou para trás, atravessei a calçada e pensei na roda de
capoeira. A poucos metros, havia uma. Era de lei. Todos os dias, desde que
fizesse sol, a meninada se reunia para brincar um pouquinho de África e fazer
viver a herança do povo que veio do lado de lá. Como eu amava aquela arte
singela para o gosto e com reflexos pueris n’alma! Antes de chegar, olhei à
esquerda: vi um caminho; à direita, atrás e à frente, também. Estive no meio da
encruzilhada. Gritei para onde ir? Dos
quatro cantos uma gargalhada e, no piscar de olhos, o movimento que sumia, em
flashes, na dança inconfundível. Quem sorria? Quem dançava? Era Ele, o dono da
rua.
Segui em linha reta por intuição. A brincadeira estava armada, e
os cânticos já se faziam ouvir. Retirei da bolsa a roupa branca; vesti-a em
instantes, saudei os capoeiras, tratei de colocar um sorriso no rosto. Seria a
minha despedida. Entrei na roda, com movimentos cadenciados, só para curtir o
momento, deixar a melodia do berimbau invadir a mente e contagiar o corpo.
Emocionado, esqueci a brincadeira e continuei a gingar; foi quando o jogo de
cintura deu errado e, acidentalmente, levei uma senhora bênção. Parecia mentira, mera impressão. Antes fosse tudo isso. Mas,
não era. No fundo, Ogum me dava o seu último aviso.
Teimoso, desconsiderei os fatos. A lembrança de minha mãe, uma
sábia filha de Nanã, dizendo-me na infância: “resista o que for; não abandone a
sua missão”, refletiu e apagou-se. Um pouco cansado, cumprimentei a minha gente
e cuidei de abraçar um a um. Prometi retornar em breve. Aleguei que não
conseguiria “ficar muito tempo longe”. Uma meia-verdade. A saudade já me
acompanhava naquele momento. Todas aquelas figuras diziam algo importante para
mim, porém o sonho de triunfar no rumo das coisas materiais falava mais alto, e
de tão estridente mudava a minha respiração a ponto de me deixar ofegante. Com
a velha mochila nas costas, batia às mãos e escutei o desejo sincero: “Ogunhê,
meu Pai, proteja o nosso amigo”.
De retorno a casa, resolvi mudar o percurso habitual. Por conta
própria, quis passar pela estrada de ferro. Vagarosamente, caminhei. Nenhuma
intuição me veio. Por que viria? Não estava eu tão decidido, senhor das minhas
ações, conhecedor do destino? As energias dos Orixás percorrem a Terra, quem
puder ver e não quiser, está selando os seus caminhos. Se Ogum jamais aceitou
uma coroa de jóias, devido a sua humildade, não devia eu, um simples filho,
desejá-la por ganância. Não devia, é verdade. No entanto, desejei...
... Por não saber o que é bom. A simplicidade da vida jamais foi
motivo de lamento pelos cantos. Minha mulher cozinhava para fora, o trabalho na
fábrica de metalurgia sempre me trouxera um pouco mais que o necessário, e o
meu filho, além dos estudos, brincava como toda criança.
No dia do vôo, ventava demais. Havia um temporal armado nas nuvens.
Enquanto, as famílias se abraçavam, uma eletricidade rasgou o firmamento, pondo
medo no semblante das pessoas. Eu, que pela primeira vez subiria num avião,
temi a estréia. Em silencio, roguei aos ventos que desviassem as nuvens da
minha rota. Não fui atendido, e a decolagem foi adiada. Exatas cinco horas
precederam a partida. Bem nervoso, apertava, num abre e fecha, as minhas mãos
frias e esbranquiçadas. A respiração, em face da angústia, também não era das
melhores. O peito, como se tivesse um peso em cima, fazia-me evitar qualquer
conversa. Apertei a medalhinha do cordão para rezar. Tentei imaginar uma torrente
de luz que me envolvesse; não consegui. O máximo que via era uma espada
riscando traços sobre a cor cinza do céu.
Viajei no tempo, sem me dar conta do que acontecia. O desgaste
emocional fora tamanho que só me restou cair no sono. Juro de coração: até fiz
força para resistir, mas não deu. O cansaço, certamente, era bem maior do que a
minha vontade. Dos males, o menor. Dei trégua à mente tão açoitada pelos
pensamentos – vacilantes e desobedientes, quase uns azougues, coisa de
enlouquecer.
Ao acordar, já em terra
firme, lembrei-me, com alguma nitidez, do sonho que tive. E nisto não há
surpresa. Por mais paradoxal que possa parecer, enquanto eu estava no ar, a
epopéia onírica me levava às margens de um rio, onde se podia ouvir um canto
divinal. Maravilhado, caminhei fazendo os ouvidos de bússola; quando de
repente, vi sendo arrastada pelas correntezas uma coroa que brilhava intensamente.
Sai correndo, aos gritos de: “É ouro, é ouro!” Mergulhei para alcançá-la, e a
jóia desapareceu como miragem.
A cena viva nas águas doces me trouxe um presságio desanimador.
Que intuição pura! De tão realística chegava dar medo. Pensativo, apanhei a
bagagem e comecei a fitar o relógio enquanto o meu futuro colega de trabalho
não aparecia para me levar à hospedagem. O combinado era: assim que eu
chegasse, ele estaria apostos. Ocorreu, justamente, o contrário – esperei por
duas horas, que mais pareciam quatro, tamanha a minha inquietação.
Quando, enfim, Manoel – eis o nome do “pontual funcionário” – chegou, respirei aliviado. Embora, ele tenha
justificado o atraso, confesso: não dei muita importância, respondi com o
cordial “sem problemas” e, logo, a prosa ganhou novo rumo. Dentro do carro,
conversamos sobre as atividades da empreiteira e os motivos que me fizeram
aceitar a proposta de outra firma, longe da Bahia. Ficou assinada pelas minhas
palavras a motivação única e impreterível da mudança: “dinheiro, grana, verba...”.
Nada além dessa secura espiritual.
Talvez, o gentio anfitrião tenha ficado zonzo com a dimensão da
ganância. Quem sabe eu, noutra época, também ficasse. Agora, o que se via era
um filho de Ogum acorrentado pela ambição. Não do Orixá, isso jamais, mas a
sua: triste homem escritor de destinos, não sabe o poder que possuí. Fazer o
quê? Antes muitas coisas, inclusive, tomar a decisão certa. A prosperidade mora
no mesmo lugar desde sempre e não se desloca, quem quiser desfrutá-la, siga a
dica: que vá até ela. Eu a encontrei pertinho de mim, mas resolvi buscar uma
maior, talvez, a dos outros. E se é dos outros não atende as nossas medidas. No
âmago dos sentimentos – um lugar interno, onde somente nós podemos visitar –
cresce a sensação de vazio.
Você se prepara para dormir. O apartamento é bom, a cama macia,
não falta água, nem comida. O conforto está por toda parte. Como justificar a
tristeza e os calafrios? Observo ao redor e o que tenho? Cozinha sem tempero, casa que não tem
infância, vizinhança sem amigos.
E assim se deu a última década da minha vida. Envelheci demais.
Tomei uma aparência soturna. Perdi o ânimo de ser feliz. Até os 6 anos, desde a
partida, o pouco que me alegrava eram as ligações diárias para Bahia. Depois,
nem isso. Mariana, minha bela esposa, tornou-se ex. Não agüentou a solidão.
Graças a Oxalá, ela criou o nosso filho dignamente. Pelas notícias que me
chegavam o “meu menino” havia se tornado um homem bonito, estudioso e um grande
companheiro da mãe. Menos mal! Conseguiu algo que eu não fora capaz.
Hoje, em 2014, estou de volta à Bahia. Que o Senhor do Bonfim me
proteja! Quero dar voz a minha missão. Fazê-la ecoar dentro de mim. E nunca
mais abandoná-la. Espero que dê tempo. De certo, hei de merecer um recomeço.
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