sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Cena de amor

    Solitário, em meio à multidão, um grande amigo me convidou para passearmos. A noite estava órfão de beleza, como eu jamais havia visto. Os anjos pareciam ocultar os seus olhos estelares, e o céu, sem adornos, não chamava atenção de ninguém. Caminhando pelas ruas, pensei em fazer versos; queria alegrar a triste alma que me acompanhava. Não consegui. Intimamente, só pensava na ausência daquelas lágrimas azuis, que se põe no firmamento. Ainda em silêncio, vimos algumas crianças malvestidas, remexendo o lixo. Perplexo, comentei com o meu amigo: – Procuram comida. Ele suspendeu o semblante, outrora cabisbaixo, e caminhou em direção aos pequeninos. – Onde vai?, perguntei, tentando impedi-lo, mas nada pude fazer. O movimento possível me permitiu ver em seus olhos o sentimento terno pelas misérias alheias.

   Havia ali perto, um pequeno bar. Entregou-me uma nota e pediu que eu fosse comprar comida, para dividir entre todos. Considerei arriscado ficar naquele lugar escuro, cheio de becos e de sons estranhos. De vez em quando, ouvia-se uma gargalhada de gente ébria. Compadecido pela atitude do meu amigo, esqueci as objeções e fiz o que ele me pediu. Ao voltar, trazia, em sacolas, bebidas, sanduíches e doces.  Foi lindo ver aquelas crianças, sentadas no meio-fio, ouvindo um dedinho de prosa. Os estômagos vazios suportavam a fome, porque o coração estava se enchendo de sonhos. O cheiro de comida, porém, mexeu com todos, e eu, prontamente, comecei a servi-los.

  Era bonito e, ao mesmo tempo, aflitivo ver a forma com as crianças comiam. Certamente, gozavam de enorme felicidade, mas o apetite, de tão enganado, devorava o lanche. Parecia ter medo de estar vivendo uma ilusão. As mãos franzinas quase sumiam a cada bocada, e o molho que escorria pelos dedos levava lambidas. Cada sabor tinha o seu significado. Vi crianças comendo iguais a lobos famintos.

  Após o lanche, o meu amigo, novamente, surpreendeu-me. A minha visão limitada da vida já considerara aquele gesto algo sublime e digno de aplausos. No entanto, o dono da atitude não pensava assim. Naquele momento, para ele, nada poderia ser mais importante do que as crianças. Elas, sim, eram as artistas da noite. Convencido disso, o nobre camarada sentou-se no chão e perguntou se elas queriam ouvir uma estória.

   – Queremos!, disseram todas.

  – Por favor, não vá embora, temeram algumas.

  Preocupado com a hora, disse-lhes que eu não poderia ficar. De repente, uma mãozinha quente, tocou-me as costas e pediu: – Fica, tio. Não pude recusar. A palavra veio com tamanha energia que me arrebatou e convenceu. Esqueci os compromissos, desliguei o celular e perguntei ao meu amigo: 
   – Que estória contará a essas crianças? Também quero ouvi-la.

   – Falarei de humanidade.

   – Como? Isso é muito complexo, envolve política, guerras, impérios, filosofias...

   – Eu disse humanidade, enquanto sentimento, e não a reunião de fatos sobre o que fez o homem sobre a terra desde os primórdios.

   Calei-me para escutá-lo. A maneira como negara a minha afirmação fora gentil e abrira um poço de curiosidade dentro de mim. Enquanto, eu imaginava grandes teorias, ele vinha com uma simplicidade autêntica, tão peculiar à sua índole.

   – Meus queridos, posso começar?, perguntou às crianças.

   Em uníssono, todas responderam: – Pode!

"Vinde a mim as criancinhas"
   Por instantes, veio à cabeça a imagem dos pequeninos caminhando em direção ao Mestre amado. De certo, o meu amigo lembrou-se da santa atitude que tanta vezes exaltou: – Jesus cuidou dos mais frágeis! Dizia isso com intensidade, claramente, emocionado, alterando o estado de consciência pela elevação dos pensamentos.

  Um menino resolveu perguntar o nome do meu amigo. Sem esconder, ele respondeu: – João. Assim, todos se apresentaram. E na voz do contador de estórias, Pedro virou Pedrinho; Maria, Mariazinha; Luiz, Luizinho... Sempre no diminutivo para marcar o tom de carinho e proximidade.

As palavras começaram a surgir:
   – De todas as belezas que existem no mundo, a maior é a Humanidade; nenhuma criatura de Deus pode fazer tanto quanto os homens.

  Eu interrompi: – Por que você diz isso, se há tanta miséria e fome? Veja essas crianças, ninguém olha por elas! O homem é egoísta.

  – Não tiro a sua razão de me questionar. Os adultos perdem a esperança porque acreditam pouco no próximo; experimentam, cheios de orgulho, a utopia da independência, a vontade de estar acima de todos e viver distribuindo ordens. Isso é impossível. Não importa se o comportamento autoritarista vem do presidente da república ou do chefe de família. Em cada caso, todas as vezes que o homem age desta forma, há sofrimento e dor. Os maiores exemplos de felicidade nascem quando as pessoas entendem que precisam uma das outras.

   Negrinho como o manto da noite, Rafinha prestava atenção. Tinha os olhos fixos no prosador e um frio que o fazia se encolher. A falta de agasalho, porém, não o impediu de levantar a voz: – Meu pai é igual às pessoas que o senhor está falando. Depois que batia nos meus irmãos e na minha mãe, ele sempre dizia: “quem manda nessa casa sou eu. Vocês bebem, comem e dormem, graças ao meu dinheiro”. Contando, o menino chorou.

   Vendo-me abraçá-lo durante o choro sincero, João trouxe a palavra consoladora: – Rafinha, fique à vontade. Você é nosso amigo. Saiba que o seu choro é a expressão mais bonita dos meus últimos tempos. Tenho visto miséria acompanhada de violência: pessoas que sofrem revoltadas com a vida. Mas, você chora as lágrimas de uma alma pacífica. Vejo, que apesar de tudo, ainda ama o seu pai.

   Rafinha abraçou o amigo ao lado e chorou um pouco mais. João percebeu o momento propício para falar de humanidade. Tinha, à frente, crianças abandonadas, fruto de uma sociedade em desequilíbrio, que dá valor as coisas e desprestigia a dádiva da vida. Se existisse amor real, entre os homens que governam e são governados, aquelas frágeis criaturas não estariam ali, jogadas numa sarjeta, sem ter o que comer.

   Como se pudesse ler os pensamentos de João, eu, quase, voltei a interpelá-lo para me desfazer da humanidade, da qual a minha vida faz parte. Não consegui, pois ele voltou a falar, fraternamente, com um sentimento capaz de desfazer a minha carranca. Chegara a vez de meu espírito chorar; intimamente, enterneci-me.

  – Fico alegre por vê-los, meus queridos, tão amigos. Cheguei aqui e, em momento algum, vi brigas, ofensas e orgulho; pelo contrário, vejo amizade, amor e compreensão. Quando o Rafinha chorou, foi, prontamente, consolado. Isso é humanidade: a reunião de grandes virtudes, que os brandos e pacíficos sabem externar. Por vivenciar isto, eu digo: acredito nos homens, porque sei que eles nascem crianças e, um dia, voltarão a ser crianças, por descobri-las escondidas dentro de seus corações.

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