Uma vida devotada à caridade. Desde
criança, o brilho de uma luz rutilante nos olhos e a companhia inseparável do
Evangelho, que Emmanuel, em sublimada inspiração, classificou como “o Sol da
imortalidade”. Amável, Lurdinha carreava amizades por todos os cantos aonde ia.
Tinha sempre, em mãos, algo de bom para oferecer. Até mesmo os famintos
vira-latas das ruas a procuravam, pois além do faro apurado, possuíam o
sentimento de que uma ajuda lhes seria ofertada. É fato que doses abundantes de
amor transbordavam das comportas daquele coração.
Conforme a consciência se aprimorava no labor
da solidariedade, a encantadora criança ampliava o campo de sua atuação,
amparada por benfazejas entidades. Hospitais, asilos, orfanatos, leprosários...
Com estimado zelo, ela frequentava todos, valendo-se do amor de que se
nutria. Dona de uma saúde de ferro, a menina virou moça e, nas lides da
abnegação ao próximo, construiu a índole de uma mulher de fibra, sem perder a
sensibilidade.
Criou filhos. Dedicou-se ao marido.
Enfrentou o trabalho pela remuneração honesta. Esteve na academia para
conquistar o diploma de doutora, em medicina. Uma guerreira! Sem armas,
contendas ou tom de voz elevado. Vivia para o bem. Até mesmo as línguas
maledicentes curvavam-se diante do exemplo irrepreensível. Certa vez, no
plantão de um hospital público, um paciente irritadiço a ofendeu com duras
palavras em virtude da precariedade do ambulatório; e ela, carinhosamente, chamou-o
de “meu irmão” e pôs-se a fazer o curativo em sua perna ferida, aliviando-lhe a
dor, na ausência da enfermeira.
Quando a aposentadoria bateu à porta,
sinalizando que era chegada a hora de parar, Lurdinha continuou o serviço
fraterno nas zonas periféricas de sua cidade. Eram 70 anos vividos. Sem pausa.
De sua alma jorravam luzes esmeraldinas, translúcidas, de fulgor intraduzível.
Doando, como dedicada médium de cura, ela hauria paz de espírito, junto à Divina
Bondade.
Nas reuniões do centro espírita, sentava-se
sempre ao lado dos principiantes para encorajá-los na lavoura extensa do
Consolador Prometido. Apesar da extraordinária articulação, dava palestras em
tom ameno, utilizando-se de palavras comuns à vida da maioria para que as
ideias evangélicas, essas, sim, pudessem cintilar.
Lurdinha,
de fato, vivera, na intimidade, sem problemas, embora cercada por muitos deles,
no contato com a realidade dos semelhantes. Seu código de ética era o cuidado. E por cuidar, dedicava o que
tinha de melhor. Não fazia nada às pressas, ainda mais quando o assunto era uma
alma irmã. E as dificuldades do percurso iam desistindo. Nem a morte – que,
muitas vezes, viu bater à porta ao lado – derrubava-a. De ouvidos atentos às
trombetas do Céu, sabia que nada era fatal.
Como essa convicção a ajudaria! Numa manhã de
segunda-feira, a querida senhora não levantou da cama. Sentiu-se indisposta.
Algo raro. E os filhos logo se espantaram. Não tinham recordações nem de
resfriados da mãe. Apesar do pequeno espanto, todos consideraram a ocasião de
uma ‘primeira vez’. Lurdinha passou o dia acamada. Chegou à noite; então,
sentiu-se pior. Apresentava alguma estranhes no comportamento e, na face,
trazia um semblante de exaustão. Acharam, por bem, que deveriam levá-la ao
médico. E assim fizeram.
Diante do quadro, ocorreu a internação.
Lurdinha passara muito mal. Os velhos amigos da belíssima profissão
atenderam-na com gigantesco carinho, as enfermeiras cercaram-na de atenção, e
os pacientes, ao saberem da notícia, ficaram preocupados, cheios de vontade de
vê-la. Houve até quem chorasse. Naquela cama hospitalar, estava adoentada a mãe
‘do coração’ de cada um. A dor, sem dúvidas, era mais profunda. Falava à alma.
O melhor a se fazer era esperar. Enquanto
isso, os corredores do hospital transformaram-se num ambiente de preces. Muitos
deram às mãos. Outros se recolheram a fim de orar em silêncio. O clima comum
dos dias ganhou matiz especial. Familiares, ali, há tempos à espera de seus
doentes em recuperação, ganharam ânimo novo com a beleza espiritual que se
acercara de um lugar, onde nenhum homem gostaria de estar. Foi bonito de se
ver. A fraternidade tornara-se, por instantes, modelo para os aflitos. A vida
enfadonha tomou contornos de leveza. Melancólicos contumazes recordaram que
tinham fé e entregaram-se a vontade de Deus, suplicando-O a cura, se esta fosse
de seu merecimento.
Quinze
dias foram percorridos. Dona Lurdinha entrara em coma, sem que os médicos
pudessem diagnosticar, com precisão, a causa do acontecido. Os filhos se
desesperaram. “Por quê?”, questionou o mais velho. “Justo com ela, que só havia
feito o bem?”, indagou o caçula. O sofrimento uniu ambos e, em condoído pranto,
abraçaram-se. Com o desespero, veio também o inconformismo. Algumas pessoas que
viveram, de perto, a missão humanitária de D. Lurdinha tentaram acalmar aqueles
dois jovens, cujo desespero fê-los imaginar-se à beira do luto.
Em breve, o fato se espalhou. Na casa
espírita, as vozes, mais antigas, sublinhavam a explicação: “são consequências
de outras vidas”. Consciências, não tão resignadas, desacreditavam a assertiva.
Repetiam a inesquecível frase de Kardec, “fora da caridade não há salvação”. E,
por enfatizarem o exercício que põe o amor em movimento, julgavam-se na
condição de penetrar os desígnios de Deus e afirmavam: “com tanto serviço ao
próximo, ela não merecia tamanha agonia”.
Porém, o desencarne
esperado não aconteceu naquele tempo. D. Lurdinha ‘dormiu’ por 10 anos.
Retornou à pátria espiritual aos 80. O período, de aparente ‘invalidez,’
despertou cuidados amplos, de muita gente. Inclusive dos filhos que – por terem
a mãe sempre prestativa – esqueceram-se do dever de servi-la, mesmo nos dias de
visível cansaço. Brotaram, assim, mãos operosas, lábios dulcíssimos, corações
amigos, pensamentos irmãos e carícias de luz. D. Lurdinha foi visitada todos os
dias. Jamais passou uma madrugada sozinha. À cabeceira de seu leito, foram
dispostas imagens de santos, folhetos de orações, terços, água fluidificada
para lhe umedecer os lábios, Bíblias abertas nas páginas do Velho Testamento,
galinhos de arruda... Tudo arrumadinho. Uma comunhão de crenças. Laços de fé.
Em coma, ela conseguira reunir corações que, de tão enternecidos, ignoraram as diferenças
religiosas.
Quando a perplexidade já se convertera em
alegria, uma carta do mundo espiritual chegou ao centro espírita, e a todos
inundou de lágrimas. Pôde-se ver em cada olhar um choro bem sentido, daqueles
que partem de atmosferas antes insondáveis da alma e veem revelar a Bondade que
vai além das nossas forças.
Por acréscimo de
misericórdia, o manuscrito dizia assim:
Irmãos,
cheios de júbilos, recebemos, neste lado da vida, a nossa querida Lurdinha,
meiga e doce, como sempre. A saudade é enorme, eu bem sei. Mas, pelo que vi de
perto, vocês aprenderam a não se lastimar. Amaram muito sem pedir explicações.
Creram em Deus. Entregaram-se a Piedade d’Ele. Lurdinha está aqui e pede para
lhes dizer ‘um muito obrigada!’. Porque além da caridade, ela aprendeu outra
palavra no alfabeto divino: humildade. Todos precisam de ajuda. A mão que se
estende para soerguer é caridosa, e aquela que aceita é humilde. Lurdinha
precisava experimentar a compaixão, a solidariedade e, até mesmo, o olhar de
pena das pessoas. Ela que tanto doou, caricia de receber, pôr-se na condição do
necessitado... Amados, saibam que caridade e humildade se unem no mesmo rio da
vida. A mão operosa, de sempre, descansou, na doença do corpo, para que o
coração, mais atento, pudesse contemplar a paisagem e recolher luzes nas
Esferas do Infinito.
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