sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Contexto da Parábola do Bom Samaritano (Lc 10:25-37): o pensamento universal do Cristo

   Jesus comunicou aos seus discípulos que iria à Jerusalém. Algo absolutamente normal: rezava a tradição que todo o homem, caso tivesse condições, deveria seguir, na data oportuna, viagem rumo à capital para celebrar a festa da Páscoa. No entanto, o Cristo afirmou que, antes de chegar ao destino citado, desejava passar pela Samaria. Ora, era esse o caminho mais longo e perigoso, neste último caso, porque os samaritanos significavam, à época, o que, hoje, representam os palestinos para o povo judeu; ou seja, inimigos de morte.
   Há registros históricos de samaritanos assassinados no coração religioso e político da nação e de judeus executados na Samaria. A guerra ferrenha se dava, embora ambos os povos fizessem parte, originalmente, de um mesmo tronco, pois até o ano 700 a.C, as 12 tribos de Israel formavam um só agrupamento. Depois, do grande cisma, ficaram 2 tribos (Benjamim e Judá) ao sul e outras 10, ao norte. Na Samaria, construiu-se um novo templo para que os habitantes do local não precisassem peregrinar até Jerusalém. Havia, inclusive, disputa para saber em qual monte Deus deveria ser adorado: na avaliação dos judeus, nas paragens do Sião e, segundo os samaritanos, no cenáculo do Gerizim.
   Os apóstolos aceitaram a proposta do Cristo. Comandados por João Evangelista, ao chegarem à Samaria, buscaram hospedagem para o Mestre. Ninguém quis atendê-los devido às suas origens judaicas. Os discípulos da Boa Nova se revoltaram: os samaritanos haviam quebrado importante código de ética do oriente ao negarem acomodação a um peregrino. Existia, também, a lenda de que desceria fogo do céu para queimar a pessoa (e toda a sua família) que recusasse abrigo a quem estivesse em romaria.
   Neste cenário, Tiago e João se reportaram a Jesus, contaram os fatos e lhe inquiriram: “Senhor, queres que digamos para descer fogo do céu a fim de destruí-los?” (Lc 9:54). O Cristo, por sua vez, não deu vida a manifestação de ódio arraigada no inconsciente coletivo em virtude da tradição.
    A viagem, assim, seguiu. Jesus e os apóstolos chegaram, enfim, à Jerusalém, certamente, exaustos pelas condições climáticas e devido à extensa caminhada no deserto. Ao pisar na cidade, o Bom Pastor, logo, foi interrogado por um doutor do Sinédrio (cúpula judaica, onde operavam os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, além do banco central): "Mestre, depois de fazer o que, herdarei a vida eterna?”.
    Jesus lhe respondeu com duas perguntas: "Que está escrito na Lei? Como lês?" (Lc 10:26). O doutor viu-se em situação inversa. Ele, que desejava fazer indagações, achou-se na posição de encontrar respostas. Para tal, recorreu aos textos do Deuteronômio e do Levítico, dois livros do Pentateuco Mosaico (Torá), e citou os insuperáveis mandamentos, baseados na Lei de Amor: “ Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, com toda a tua força, e com toda a tua mente; e o teu próximo como a ti mesmo” (Lc 10:27).
    O mestre da Lei deu essa resposta sintética, porque conhecia a tradição milenar de interpretação das Escrituras. Jesus, sem emendas, confirmou a veracidade do que ouvira: "Respondeste de forma justa. Faze isto e viverás" (Lc 10:28). Estava dado o parecer do Cristo a respeito da questão: "... depois de fazer o que, herdarei a vida eterna?". Sobre o que versava, então, a conversa entre o Rabi da Galileia e o membro do Sinédrio? "Interpretação de texto", 1000 anos de estudos dos livros de Moisés e de cultura religiosa.
    Os textos mosaicos disseram aos patriarcas – Abraão, Isaac e Jacó – que a eles caberia o direito de herdar a Terra Prometida. Séculos se passaram, após a promessa divina, e alguém perguntou: Abraão morreu; como ele herdará a terra? A fim de elucidar a dúvida, Hillel, o avó de Gamaliel (mestre de Saulo de Tarso), disse que esta terra não era um lugar fixo, mas um mundo novo (regenerado), onde o amor iria prevalecer; desta forma, não mais um povo privilegiado, e sim, a Humanidade inteira.
   O erudito (o inquiridor da parábola) resumira os 614 mandamentos da Lei em 2 e foi aprovado por Jesus. Todavia, quando não queremos fazer algo que sabemos ser o certo, racionalizamos uma desculpa e ignoramos o brilho do sentimento. Para o doutor, o primeiro mandamento era perfeitamente compreensível. Os judeus estudavam-no na escola desde tenra idade.
  “Amar a Deus de todo o coração”, o que representava essa frase no primeiro artigo do Decálogo? Para o povo hebreu, o coração não era, apenas, a sede do sentimento, era morada também da inteligência. Na avaliação deles, o coração do homem é bom, mas encontra-se sempre em conflito, por isso, tem vontade de fazer o mal. Amar a Deus significa, pois, dar unidade ao coração; ou seja, utilizar o sentimento e a sabedoria no exercício do bem. Sem unidade, o coração está dividido e, desta forma, é impossível amar a Deus.
   O segundo nível: “amar Deus de toda a alma”. Alma e corpo integravam um todo; quer dizer, não havia separação entre ambos. A interpretação dizia: não venha só com sentimentos e palavras, fazem-se necessárias atitudes concretas, não à toa, eles peregrinavam e mantinham o ritual das oferendas.
   Terceiro nível: “amar a Deus com toda a tua força”, isto é: colocar todos os recursos disponíveis na atividade do bem, numa definição, a serviço de Deus. No ato de amar o Todo-Poderoso, o judeu não criava discussões. A tarefa tratava de um ponto pacífico. O problema estava em amar o próximo. Muitos defendiam a tese de que o próximo - no texto em hebraico, a palavra é irmão – era, tão-somente, amar o próprio judeu. Logo, se o sujeito fosse romano, não precisava amá-lo; se viesse da Grécia, também não e, caso fosse samaritano, menos ainda. O meu próximo deve ser alguém do meu povo. Essa era a interpretação majoritária.
   (Se nem mesmo o hebreu, o povo que recebeu a Torá, tinha domínio completo das interpretações das Escrituras devido às suas fragilidades morais, o que dizer de nós outros que, infantilmente, cremos que o Velho e o Novo Testamentos foram escritos em Língua Portuguesa para brasileiros no século XXI).
    Continuando...
   Sob o prisma daquele raciocínio, se qualquer judeu visse um romano caído na estrada, ele podia seguir adiante, pois ali, sofria alguém que não era de seu povo. Hillel, todavia, alertava que "irmão" tinha um sentido mais amplo e não se resumia, apenas, aos homens da mesma nação. Citava, para melhor discernimento, referências do próprio Antigo Testamento como a passagem em que Abraão recebeu peregrinos vindos de outro povo.
    Quando Jesus recomenda: "Faze isto e viverás"; ou seja, será considerado um justo e terá a vida eterna (um mundo de paz e amor), o catedrático diz ter uma dúvida a fim, de outra vez, testar o Nazareno: "Quem é meu próximo?" (Lc 10:29). Ele ansiava que o Cristo desse uma resposta pronta para, assim, criar contenda como quem diz: "não, este não é o meu próximo. Sou judeu". O Messias, sabiamente, conta a Parábola do Bom Samaritano com intuito de submeter o exame do tema à consciência do doutor da Lei. Quando o Cristo faz a narrativa de profundo significado espiritual, João Evangelista e Tiago, que também estavam ao seu lado, devem ter captado a lição, porque, anteriormente, eles desejavam que descesse fogo do céu para matar os samaritanos.
   Lembrete: Jesus vinha de uma longa caminhada e não encontrara repouso, pois os samaritanos haviam lhe negado hospedagem e, mesmo assim, ele conta a Parábola do Bom Samaritano para ilustrar as ações do homem de bem.
    Prosseguindo...
    Na Páscoa, Jerusalém ficava com aproximadamente 1 milhão de pessoas - 10 vezes mais a população local. Na parábola, o único ser não identificado foi o homem que descia de Jerusalém para Jericó, aquele que, no desenrolar dos fatos, precisaria de ajuda por “cair nas mãos de assaltantes, os quais, depois de havê-lo despojado e espancado, retiraram-se, deixando-o semimorto”. (Lc 10:30)
    Por que Jesus ocultara a identidade dele? Se olhassem para o viandante, dava para identificá-lo pelo sotaque? Não, ele estava inconsciente. E pela cor da pele? O sol desértico deixava todo mundo bronzeado. E pelas roupas? Ele estava nu. E quanto à fisionomia? Ensanguentada. Pois bem, aquele que desejasse auxiliá-lo deveria exercer a mais ampla caridade sem olhar a quem.
    Segue a narrativa: “Por coincidência, certo sacerdote descia por aquele caminho e, ao vê-lo, passou pelo lado oposto” (Lc 10:31). O doutor da Lei respeitava muito o sacerdócio organizado em virtude das atividades no templo. O que se espera, em verdade, de um sacerdote? Que ele cumpra a Lei Divina (os dois maiores mandamentos alicerçados no amor). A tradição do povo hebreu dizia, porém, que sob a penalização de ficar ritualmente impuro, o sacerdote não deveria tocar um cadáver e, caso houvesse o contato, a purificação, no porvir, seria muito trabalhosa. Mart Luther King, certa vez, afirmou que o ministro da fé estava preocupado consigo, sobre o quê diriam dele, e não, com a dor do outro. Fica, aqui, um questionamento: e se o homem caído pertencesse a sua parentela, qual seria o procedimento: pesariam mais os deveres clericais ou o fator humano? O levita, ajudante do sacerdote, “que vinha por aquele lugar, ao vê-lo, passou pelo lado oposto” (Lc 10:32). Eis o retrato da pessoa que imita alguém sem questionamento.
    No entanto...
    "Certo samaritano, em viagem, veio até ele e, ao vê-lo, compadeceu-se. E, aproximando-se, atou os ferimentos dele, derramando óleo e vinho. Após colocá-lo sobre seu animal, levou-o para uma hospedaria e cuidou dele. No dia seguinte, tirando dois denários, deu-os ao hospedeiro, e disse: Cuida dele, e o que gastares a mais, quando eu retornar, te pagarei”. (Lc 10: 33-35)
    O texto não diz de onde o samaritano vinha. Se estava na festa da Páscoa em Jerusalém ou se retornava de outro lugar. Não dá para afirmar se o viandante era religioso segundo as convicções da época. Entretanto, o certo é que ele "compadeceu-se". Verbo na voz reflexiva. Praticou e sofreu a ação. Tocou-se e deixou-se tocar de piedade e compaixão, assim, "amou a Deus de todo o coração". Teve o sentimento necessário e também a sabedoria para ajudar. Desceu do animal, usou o vinho como antibiótico natural, fez do azeite um bálsamo para aquelas chagas abertas, colocou o homem sobre a montaria e o conduziu pela estrada. Em seguida, levou-o até a hospedaria, pagou pelo aposento e disse ao comerciante: “Cuida dele, e o que gastares a mais, quando eu retornar, te pagarei” (Lc 10:35). Sinceramente, "amou a Deus de toda alma", com atos práticos.
    O doutor da Lei teve que reconhecer valores espirituais numa pessoa da qual não gostava. Com a força viva do exemplo, Jesus o perguntou: “Qual destes três te parece ter-se tornado o próximo do que caiu nas mãos de assaltantes?” (Lc 10:36). O religioso do Sinédrio que já detinha a resposta, em si, colocou-a para fora... Deste modo, perguntemos aos religiosos da atualidade: Quem é o seu próximo? Talvez, eles ainda respondam com o amor seletivo: “ele, ela, aquele e aquela” (todos dentro do mesmo sistema de crença que o meu). Na contraparte, “este não, esse também não, aquele menos ainda” (, pois não pertencem a minha casta).
    A pergunta de Jesus – “qual destes três te parece ter-se tornado o próximo do que caiu nas mãos dos assaltantes?” –  é emblemática. O Cristo faz a indagação sob a perspectiva do homem caído; ou seja, e se o necessitado fosse você (no caso, o doutor da Lei)? O judeu entendeu a mensagem por ser muito inteligente e certificou-se da verdade: “O que praticou a misericórdia com ele. Disse-lhe Jesus: Vai e faze tu do mesmo modo” (Lc 10:37).

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